Enquanto o Brasil anuncia cooperação na construção de um gasoduto capaz de trazer gás natural da Argentina para o sul brasileiro, a União Europeia avança no projeto de um pipeline dedicado ao transporte de hidrogênio renovável e de baixo carbono.
O projeto europeu pode, inclusive, tornar o hidrogênio produzido em países do Norte da África ou até mesmo do Oriente Médio tão competitivo quanto o fabricado no Brasil ou Chile.
Estamos falando do gasoduto H2Med, empreendimento encabeçado pela Espanha, França e Portugal, e que ganhou nesta semana a adesão da Alemanha.
O projeto espera, até 2030, transportar duas milhões de toneladas de hidrogênio verde por ano a partir da Espanha, o que deve representar 10% do total consumido pela União Europeia.
Dentro dos objetivos de transição e segurança energética do REPowerEU, o uso de hidrogênio no bloco europeu deve chegar a 20 milhões de toneladas por ano até o final da década.
Até agora, estima-se um investimento de cerca de de 2,5 bilhões de euros no H2Med (no trecho Espanha-França), mas se cogita a ampliação do gasoduto até o Marrocos, no Norte da África.
Espinha dorsal para o hidrogênio
Em declaração conjunta nesta semana, França e Alemanha se comprometeram a tomar as medidas necessárias para viabilizar o projeto que chamaram de “uma espinha dorsal europeia para o transporte de hidrogênio”.
Duarante o encontro entre os presidentes dos dois países para celebrar a parceria, — que envolve também outras iniciativas para transição energética –, o chanceler alemão Olaf Scholz pontuou: “Queremos que o hidrogênio esteja disponível em grandes quantidades e a preços acessíveis como o gás do futuro”.
Já o francês Emmanuel Macron destacou que a França e Alemanha concordaram em dar uma “resposta europeia ambiciosa” e “rápida” à Lei de Redução da Inflação adotada pelos Estados Unidos, que conta com grandes subsídios para transição energética, incluindo o hidrogênio verde.
O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez, deu as boas-vindas à Alemanha. “O corredor verde definitivamente fortalece sua dimensão pan-europeia”, escreveu no seu twitter.
A expectativa do Ministério Espanhol para a Transição Ecológica é que, em 2050, 20% de toda a energia na Europa seja hidrogênio renovável.
O desafio do transporte
Apesar de países como Brasil, Chile e Austrália se apresentarem como os potenciais produtores do hidrogênio verde mais barato do mundo, na equação do preço pago pela Europa — principal demanda do combustível renovável — não entram apenas os custos de produção, mas também os de transporte.
E os países do Norte da África e Oriente Médio contam com a vantagem de já possuírem gasodutos conectados com a Europa, ou a possibilidade de construção de gasodutos dedicados para o hidrogênio, a exemplo do H2Med.
Países da América do Sul, como Brasil e Chile, ou Ásia-Pacífico, como a Austrália, dependeriam de transporte do hidrogênio via navios.
O transporte do hidrogênio liquefeito, algo similar ao GNL, por navios-tanque, pode ser até nove vezes mais caro que o gasoduto.
Já o hidrogênio transportado na forma de amônia líquida vem sendo a aposta mais indicada e barata para longas distâncias. Entretanto, o custo de amonificação, transporte e reconversão da amônia em hidrogênio pode mais que dobrar o custo do H2 no destino final.
Estudo recente da Aurora Energy mostra que uma rede transfronteiriça de gasodutos permitiria que as exportações de hidrogênio do Marrocos para a Alemanha custasse 20% menos do que as feitas por navios, em 2030.
Ainda assim, o estudo pontua que mesmo em navios, o hidrogênio em forma de amônia, importado do Chile e Austrália, seria mais competitivo que o produzido na própria Europa.
Ponte do Mediterrâneo
A região do Oriente Médio e Norte da África (MENA, na sigla em inglês) tem enorme potencial para fornecer à Alemanha e à Europa hidrogênio verde a partir de energia renovável barata, de acordo com estudo do Centro Aeroespacial Alemão.
Em 2020, foi lançada a MENA Hydrogen Alliance (Aliança para o Hidrogênio dos países do Oriente Médio e Norte da África), que reúne atores dos setores público e privado para impulsionar economias verdes de hidrogênio.
Em artigo, o presidente da aliança Frank Wouters avaliou que numa primeira fase, entre 2030 e 2035, a infraestrutura de gás natural poderá ser utilizada para transportar hidrogênio do Norte de África para a Europa.
Essa é a estratégia da Argélia, por exemplo, que pretende utilizar os gasodutos existentes, numa mistura de até 20% de hidrogênio com gás natural, e mudar gradualmente suas exportações de gás para 100% de hidrogênio verde e azul.
Wouters acredita que ao longo dos anos, com o custo decrescente da eletricidade renovável e dos eletrolisadores, cada vez mais o hidrogênio verde poderá viabilizar a construção de dutos dedicados.
“Eventualmente, os oleodutos de hidrogênio construídos especificamente conectariam os locais de produção marroquinos com o backbone europeu de hidrogênio”, escreveu.
O Marrocos espera dedicar dois terços de seu hidrogênio verde às exportações e, em 2020, assinou um memorando de entendimento com a Alemanha para desenvolvimento de projetos de hidrogênio.
Em novembro do ano passado, durante a COP27, no Egito, Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão Europeia, confirmou a intenção do bloco em facilitar o acesso ao financiamento e promover o investimento em toda a cadeia de valor do hidrogênio renovável no Egito, incluindo projetos de gasodutos.
Atualmente, quatro dutos ligam o continente africano ao europeu. Dois ligando a Argélia à Espanha (um deles cruzando o Marrocos), e dois que conectam a Itália à Argélia e à Líbia.
Segundo o Instituto Italiano de Estudos Políticos Internacionais (ISPI, na sigla em italiano), países do Norte da África podem priorizar a exportação de hidrogênio verde para a Europa, devido à sua vizinhança e infraestrutura existente, sendo a Itália uma “ponte de hidrogênio” entre as duas margens do Mediterrâneo.
Enquanto isso, os países ricos em petróleo do Golfo podem exportar hidrogênio verde para a Europa e o azul para os países asiáticos — que teriam maior aceitação pelo hidrogênio feito a partir de gás natural com captura de carbono, a exemplo da política do Japão.
Golfo do hidrogênio
Os ambiciosos planos de hidrogênio dos tradicionais exportadores de petróleo no Golfo incluem Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Omã.
Omã estabeleceu a meta de se tornar um dos maiores produtores e exportadores de hidrogênio verde do mundo, visando a produção de um milhão de toneladas anualmente até 2030.
Por lá, dois projetos se destacam. O Duqm, da empresa indiana ACME, que prevê US$ 3,5 bilhões de investimento em uma planta para produção de hidrogênio verde e amônia verde em larga escala.
E o Green Energy Omã, um consórcio que inclui a empresa estatal de petróleo e gás OQ, e espera produzir 1,8 milhão de toneladas por ano de hidrogênio verde e até 10 milhões de toneladas por ano de amônia verde.
Na Arábia Saudita, o NEOM Green Hydrogen Project promete ser a maior instalação de hidrogênio verde em escala comercial do mundo.
Quando entrar em operação, em 2026, estima-se a produção de 600 toneladas por dia de hidrogênio verde.
Especialistas não descartam a possibilidade de um gasoduto que conecte o projeto ao Norte da África e posteriormente à Europa. O próprio ministro da energia saudita, príncipe Abdul Aziz bin Salman, afirmou que considera a ideia.
Nos Emirados Árabes Unidos, desde 2020, o Conselho Supremo do Petróleo de Abu Dhabi instruiu a Abu Dhabi National Oil Company (ADNOC) a se tornar um “líder do hidrogênio”.
País pretende ocupar 25% do mercado global de hidrogênio de baixo carbono, cujo valor deve chegar a mais de US$ 400 bilhões por ano em cinco anos.
A conexão do Golfo com a Europa por meio dos gasodutos, contudo, apresenta desafios geopolíticos, uma vez que os países acima citados dependem de acordos com os vizinhos para colocar de pé tais projetos.
Os diversos conflitos na região também podem atrapalhar os planos de infraestrutura dedicada ao transporte de hidrogênio entre as regiões.
Bom lembrar, que nem mesmo a recente crise energética na Europa foi capaz de fazer avançar antigos projetos gasodutos de gás natural no Oriente Médio.
Por outro lado, o avanço de tecnologias que aumentem a eficiência do transporte de hidrogênio via amônia, em navios, pode reduzir os custos e trazer um cenário de maior equidade competitiva entre os mercados que disputam pelo hidrogênio renovável mais barato.
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