A transição energética assumiu no período pós-pandemia um formato explícito de política industrial e disputa na reorganização das cadeias de valor industrial.
O setor de energia sempre esteve relacionado com o desenvolvimento econômico e estratégico dos países, principalmente, no que se refere à segurança energética, no entanto a transição energética associada a um necessário salto tecnológico coloca a transição no centro da política industrial.
Isto inclui as cadeias de valor diretamente relacionadas com a indústria de energia (cada vez mais intensiva em capital e tecnologia), os setores industriais eletrointensivos, mas também, em maior ou menor medida, todo o complexo industrial, já que energia é um insumo básico, de uso transversal.
Assim a transição energética neste momento é vista como uma mudança do paradigma produtivo , como deixa claro o documento, do início deste ano, Green Deal Industrial Plan, da Comissão Europeia, quando sublinha que:
“aqueles que investirem primeiro e mais rápido hoje garantirão seu lugar nesta nova economia e criarão empregos para uma força de trabalho recém-qualificada, irão rejuvenescer as bases de produção industrial, reduzir os custos para as pessoas e empresas e estar em uma posição privilegiada para apoiar outras partes do mundo a descarbonizar seus próprias economias”.
O enfoque na liderança da transformação produtiva vem gerando uma competição pela internalização das cadeias estratégicas de valor industrial, o que se traduz nos discursos e políticas dos Estados Unidos e da União Europeia.
Há diversas políticas que nestes países já estão alinhadas com o tema de transição energética, como por exemplo, as políticas de compras públicas e de ciência e tecnologia. No entanto, as duas principais políticas na definição desta estratégia de industrialização são o Reduction Inflation Act e o Green Deal Industrial Plan.
O Reduction Inflaction Act (RIA), assinado em agosto de 2022, é considerado um dos maiores pacotes de política industrial dos Estados Unidos. A Lei visa estimular o investimento em tecnologia verde nos Estados Unidos, destinando US$ 370 bilhões em subsídios por meio de doações, empréstimos e créditos fiscais a entidades públicas e privadas.
O texto publicado afirma o objetivo de fortalecer as cadeias de valor desde a produção de minerais críticos até a de equipamentos eficientes no uso de energia. Um dos elementos que chama atenção nesta política é a utilização de critérios de conteúdo local e geração de trabalho, principalmente para grupos específicos e vulneráveis, para a definição do tamanho das subvenções.
A política estadunidense se compromete em destinar 40% dos benefícios do RIA a comunidades em desvantagem, incluindo aquelas que sofrem de injustiça climática e ambiental. Assim, o RIA inclui, ademais de temas de política industrial, temas redistributivos internos ao país. No entanto, não há considerações de temas redistributivos internacionais.
A União Europeia, por sua vez, estabeleceu uma meta de 40% de produção local para tecnologias com emissões líquidas zero até 2030. O Green Deal Industrial Plan, lançado em fevereiro de 2023, é uma resposta ao RIA. As políticas podem ser agrupadas em quatro áreas: (1) promover a simplificação e previsibilidade do ambiente regulatório, (2) agilizar o acesso ao financiamento, (3) desenvolver as qualificações necessárias, (4) facilitar o comércio para cadeias resilientes.
Além disso, um mecanismo para evitar fuga das indústrias está sendo discutido na UE, o Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM). Este mecanismo objetiva equalizar o preço das emissões nos produtos domésticos e importados para garantir realocação da indústria nos países com políticas menos ambiciosas.
Na prática, avalia-se que tal mecanismo gerará incentivos para que os países com interesse em exportar para o mercado europeu descarbonizem suas cadeias de produção. Estima-se que o CBAM será implementado em fases, sendo que a primeira incidiria sobre o comércio de ferro, aço, alumínio, cimento, fertilizante e eletricidade.
Estas políticas de transição nos exigem refletir como a transformação das cadeias de valor globais impactará os países subdesenvolvidos, e como garantir que isto não aumente a desigualdade social. Estamos vendo de forma muito nítida uma revalorização dos recursos naturais e uma disputa de realocação de aportes financeiros.
Vale recordar que a crise climática já sublinha as injustiças em nível internacional em muitas dimensões, a exemplo da responsabilização histórica das emissões e das diferenças na vulnerabilidade e resiliência da sociedade em relação aos crescentes eventos extremos.
A esta perspectiva se somam outros elementos: a competição pela liderança industrial e tecnológica, associada às políticas de transição, e os fluxos internacionais de capital, que poderão acentuar as desigualdades já existentes ou criar novas.
Diante deste quadro, há uma grande urgência em pensar, planejar e agir de forma estratégica para transformar e reposicionar a indústria brasileira no fluxo desta transformação energética inexorável.
Isto requer políticas amplas e de longo prazo, integradas e coordenadas em um ambiente democrático, capaz de articular não só representantes da indústria de energia, mas também os responsáveis por todos os âmbitos estratégicos do desenvolvimento do país, como a indústria, a inovação, a educação, a infraestrutura e a política externa.
Devemos ser capazes de assegurar que o equacionamento da questão climática não ocorra ao custo do aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais. Esta é uma situação em que a inação, ou ainda, ações descoordenadas, de curto prazo e sem ambição não são uma opção. A ausência de uma estratégia proativa significa um reposicionamento passivo e um risco de aprofundar a desindustrialização e desemprego.
Michelle Hallack é economista e consultora executiva.
Este artigo expressa exclusivamente a posição da autora e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculada.