A transição energética é um dos pilares centrais da agenda climática mundial. Desde o Acordo de Paris, firmado em 2015, países se comprometeram a reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa para limitar o aquecimento global a 1,5°C.
Para alcançar essa meta, a Organização das Nações Unidas (ONU) e organismos internacionais estabeleceram diretrizes ambiciosas, aumentar a participação das fontes renováveis na matriz energética, eliminar gradualmente o uso de combustíveis fósseis e promover eficiência energética em todos os setores da economia.
A transição energética brasileira é vista como um passo essencial para reduzir emissões e alinhar o país às metas globais de descarbonização. Porém, por trás dessa narrativa, surge uma disputa silenciosa, não se trata apenas de energia, mas também de água.
Em uma economia de baixo carbono, energia e água se tornaram recursos interdependentes e igualmente escassos, especialmente em regiões vulneráveis às mudanças climáticas.
Projetos de hidrogênio verde, data centers, mineração crítica, indústria química e agronegócio irrigado avançam simultaneamente, todos exigindo grandes volumes de energia e água.
O hidrogênio verde, por exemplo, depende de eletrólise, processo que consome água extremamente pura. Data centers, essenciais para a economia digital, utilizam sistemas de resfriamento intensivos.
A indústria química e a mineração crítica, fundamentais para baterias e tecnologias limpas, também demandam volumes significativos. E o agronegócio irrigado, pilar da segurança alimentar, compete pelo mesmo recurso.
No Ceará, onde o Complexo do Pecém desponta como polo internacional para hidrogênio verde, a disponibilidade hídrica é um fator crítico. A mesma água que abastece cidades e irrigação é necessária para a nova indústria verde.
Esse dilema não é exclusivo do Nordeste, outras regiões brasileiras enfrentam desafios semelhantes, com reservatórios pressionados por secas prolongadas e aumento da demanda.
A questão não se resume à geração elétrica, trata-se de infraestrutura e planejamento integrado. As políticas públicas e marcos regulatórios ainda tratam energia e água como setores isolados, quando deveriam ser pensados em conjunto.
Sem integração, o risco é criar gargalos que inviabilizem projetos estratégicos ou gerem conflitos socioambientais.
Faltam investimentos robustos em soluções como reuso de água industrial, aproveitamento de efluentes tratados para processos produtivos, dessalinização, tecnologia já aplicada em países áridos, mas ainda incipiente no Brasil, captação inteligente e interconexão hídrica.
Além disso, é urgente modernizar os marcos de outorga e priorização, considerando impactos cruzados entre energia, água e território. A governança precisa evoluir para lidar com cenários de escassez e múltiplos interesses.
A competição por recursos finitos pode gerar efeitos colaterais significativos. Comunidades locais podem enfrentar redução no acesso à água potável, enquanto setores produtivos disputam volumes para manter operações.
Há também riscos ambientais, sobrecarga de aquíferos, degradação de ecossistemas e aumento da vulnerabilidade hídrica. Do ponto de vista econômico, projetos de hidrogênio verde e data centers prometem atrair bilhões em investimentos e gerar empregos qualificados.
Porém, se não houver planejamento integrado, esses benefícios podem ser comprometidos por conflitos com o agronegócio ou pela falta de infraestrutura hídrica.
Empresas e governos precisam adotar uma visão sistêmica. Cada projeto deve avaliar sua pegada hídrica e energética, incorporando soluções circulares. Exemplos incluem reaproveitamento de efluentes para processos industriais, uso de energia renovável em plantas de dessalinização e integração entre setores para compartilhar infraestrutura.
Políticas públicas devem incentivar tecnologias limpas e gestão eficiente, com instrumentos econômicos que premiem práticas sustentáveis. A regulação também deve evoluir para garantir segurança hídrica e energética, evitando sobreposição de interesses.
O Brasil é um bom exemplo, mas não está sozinho. Países como Espanha, Israel e Emirados Árabes já enfrentaram dilemas semelhantes e investiram pesado em dessalinização e reuso.
O Brasil pode aprender com essas experiências, adaptando soluções às suas características regionais. O maior desafio do Brasil não é apenas gerar mais energia limpa, mas construir um ecossistema equilibrado que harmonize água, energia e território.
A transição energética só será sustentável se considerar a interdependência desses recursos. Caso contrário, corremos o risco de trocar um problema por outro, reduzir emissões, mas criar crises hídricas e sociais.
O futuro exige planejamento integrado, inovação tecnológica e governança eficiente. Energia e água são pilares complementares de um desenvolvimento que precisa ser, acima de tudo, sustentável.
Marília Brilhante é diretora executivo na Energo.
