OSLO — Em entrevista exclusiva à epbr, o embaixador do Brasil na Noruega, Ênio Cordeiro, falou sobre os desafios para melhorar as relações entre os dois países diante dos recentes atritos políticos, especialmente na área ambiental. Ele ressaltou o peso do mercado brasileiro para as empresas norueguesas e destacou as semelhanças na regulação e tributação, especialmente no óleo e gás.
O embaixador cobrou maior empenho das empresas norueguesas em atividade no Brasil na defesa da parceria econômica entre os dois países. Um exemplo é o acordo comercial com o Mercosul, que já vem sendo negociado há vários anos.
E também defendeu uma maior divulgação dos benefícios da parceria entre os dois países para a população, assim como um maior envolvimento dos atores políticos.
“Vejo uma tremenda atividade na área econômica, mas uma enorme timidez no plano político”, disse o diplomata.
Veja a entrevista completa:
Felipe Maciel: Como é que o senhor tem visto a relação do Brasil com a Noruega hoje, depois desses acontecimentos na Amazônia e a questão do desmatamento?
Ênio Cordeiro: A relação entre o Brasil e a Noruega é muito intensa. É muito intensa e pouco visível. É isso que eu acho, né? O cidadão o cidadão comum no Brasil e o cidadão comum na Noruega não têm a visão dessa parceria intensa e forte que existe sobretudo no setor econômico. E é normal que a Noruega busque mercados e que busque parceiros, porque é um país de dimensões pequenas, mudanças de população pequena, e de enormes recursos naturais, de enormes recursos financeiros, mas que não encontra mais no seu próprio mercado quer dizer o ambiente favorável para uma expansão. E o Brasil se tornou em algumas áreas o segundo principal parceiro comercial da Noruega. E o cidadão comum não sabe disso. Então, nós temos relações muito favoráveis, muito positivas.
E as relações políticas?
Nós temos relações muito decentes e corretas no plano político e muito intensas no plano econômico. No plano político, essas relações entraram faz alguns anos em banho-maria. E esse banho-maria se deve essencialmente a uma percepção da classe política norueguesa e das próprias empresas norueguesas com relação ao aumento dos índices de desmatamento ocorrido no Brasil nos últimos anos. Fala-se muito em desmatamento e responsabilidades ambientais brasileiras aqui. E mesmo as empresas grandes que estão no Brasil. E que têm uma enorme parceria com o Brasil. Eu não as vejo muito vocais em explicar os fatos. Eu também eu também não vejo uma participação ativa dessas empresas. Apesar da posição que adquiriram no mercado brasileiro.
Adquiriram em função de vários elementos, mas sobretudo pela existência de um ambiente regulatório favorável e de um sistema de impostos favoráveis também ao investidor estrangeiro. E é um mercado de 230 milhões de pessoas. Há poucos países no mundo que têm esse mercado. Eu não vejo essas empresas que assumiram essa posição no Brasil terem uma posição mais proativa na defesa, por exemplo, do acordo bilateral que o Brasil e que o Mercosul vem negociando há dezenas de anos.
Assim, eu vejo uma tremenda atividade na área econômica, mas uma enorme timidez no plano político e na aproximação e uma tendência a estigmatizar, que é uma tendência muito nórdica e muito puritana. De se ver de uma forma e entender que os pecados do mundo residem em outro lugar. Eu estou muito satisfeito que depois de vários anos a gente esteja retomando as conversações políticas entre os dois países. A última edição do mecanismo de alto nível de discussões políticas entre consultas políticas Brasil-Noruega aconteceram em 2017.
A pandemia teve sua influência aí, mas já tinha parado antes, né?
Já havia um problema de contatos insuficientes na área política e esses contatos são sempre muito importantes. Não para fazer uma revisão só daquilo que foi feito, mas toda essa intensidade de relacionamento que você viu e que todos reconhecem que existe. Embora não exista a necessária divulgação entre as forças políticas dos países e entre a sociedade civil como um todo sobre a natureza e intensidade desse relacionamento.
As visitas políticas de alto nível. Sobretudo as visitas de mandatários brasileiros e daqui foram o que deram um impulso político necessário para que essa parceria se estabelecesse. E nós temos que alimentar politicamente a continuidade dessa parceria. Eu acho que esse é o grande desafio nas relações políticas e econômicas do Brasil e da Noruega nesse momento. Preservar a capacidade de trabalhar juntos.
E sobretudo a capacidade de trabalhar juntos nesses dois pontos consolidar a relação econômica através de um acordo de comércio. E consolidar cada vez mais a relação do desenvolvimento de novas tecnologias ambientalmente adequadas para o desenvolvimento e crescimento econômico dos dois países. Eu não vejo nisso uma propaganda uma propaganda comercial de tecnologia desenvolvidas, porque o mundo vai sempre nos caminhos indicados pelas necessidades mundiais.
Os países têm velocidades distintas e não necessariamente as mesmas estratégias, os mesmos meios e os mesmos recursos para atingir. Evidentemente, quando se fala em energia verde, você viu agora os donos de navios dizendo: ‘É, isso é muito importante, mas não tanto, não deve dessa forma os nossos interesses de operação’.
Muito mais tem direito de dizer os países em desenvolvimento, os países que têm uma enorme dívida social, que têm uma dificuldade enorme para assegurar a sobrevivência de sua população.
E que precisa fazer essa transição justamente, certo?
Então isso que eu procurei transmitir como como mensagens assim centrais: é preciso desfazer com energia uma imagem negativa que na verdade o Brasil tem. E todos nós temos que ser muito honestos nisso, e que deriva dessa questão ambiental, mas é preciso traduzir os números da forma adequada. É preciso não ocultar o esforço que os brasileiros fazem. E é preciso não desmerecer um país do tamanho do nosso, como o parceiro que é da Noruega, com discursos que desmerecem. Esse é um grande desafio. Um dos maiores problemas que podem existir na história de um país é um problema de imagem. Você sabe que problemas de imagem, quando eles ocorrem, é muito mais difícil desfazer um problema de imagem do que a construir.
Às vezes se constrói com percepções errôneas, às vezes se constrói com os fatos corretos. Nesse caso existe um substrato bastante verdadeiro. Há um dever de casa que nós temos que resolver e realizar mais no Brasil. Mas isso não pode se transformar em dificuldade de relacionamento político, em interrupção de cooperação na área ambiental, em boicotes a negociações comerciais que são necessárias e que são uma base de sustentabilidade e de permanência com resiliência das condições que asseguram uma presença econômica tão forte da Noruega no Brasil.
Eu às vezes me pergunto por que as empresas norueguesas têm tanto sucesso no Brasil. Porque nos mesmos setores outras empresas de outros países lá estão. Mas por que, por exemplo, no setor de óleo e gás e de navegação são os noruegueses que têm predominância? Primeiro pela tradição do país, evidentemente. Também pelo fato de que são investidores suaves no trato. Isso faz parte da natureza norueguesa. Mas há certamente outros pontos que explicam.
O principal deles é o interesse econômico que as empresas daqui têm em um mercado do tamanho do mercado brasileiro. E nas potencialidades do mercado brasileiro. E outras coisas que são verdades ocultas, e que às vezes os CEOs de empresa têm uma certa vergonha em admitir. O sucesso das empresas norueguesas em países como o Brasil se deu, centralmente, porque no Brasil encontraram primeiro um ambiente regulatório parecido com o deles, muito centrado em conteúdo local, muito centrado em produção local, muito centrado em desenvolvimento de capacidades endógenas na área de Ciência e Tecnologia também. Então era empresas que estavam preparadas para essa parceria, porque o DNA delas é essencialmente estatal.
Hoje em dia, num país como o Brasil, falar em empresas estatais, às vezes parece ser um crime, né? Um crime hediondo. Mas o fato é que as empresas crescem, não só no Brasil, em setores estratégicos, elas crescem, se desenvolvem, como aconteceu aqui, como acontece nos Estados Unidos. Não existiria uma Nasa nos Estados Unidos sem investimento pesadíssimo. Isso unicamente do governo norte-americano. No setor de estratégicos, o nível de investimento e de coordenação de investimento sempre deixa muito espaço para o setor privado. Mas é um mundo de titãs, e a participação das empresas de estatais, e do capital estatal nessas empresas, é muito importante.
Por isso eu também acho que o estado norueguês não pode ser silente em divulgar e disseminar os benefícios que têm as empresas norueguesas nesta relação. Porque são empresas privadas, mas também são empresas que tem mais de 40%, 50% e nos casos de algumas até 100% de propriedade estatal norueguesa. Então, são relações do setor privado, mas que também envolvem uma altíssima participação em benefício dos setores públicos.
Com fundo soberano daqui financiando a atividade deles?
Não diretamente as suas próprias empresas e atividades. É porque isso é proibido pelas regras do fundo soberano. O fundo soberano investe em ações de empresas nas principais bolsas do mundo. Então, as principais empresas brasileiras que tem alguma participação do fundo são as mais rentáveis e aquelas que que distribuem mais dividendos e que estão presentes nas grandes bolsas de valores do mundo inteiro. Sujeitas a um sistema de regulação a um sistema de inspeção e de supervisão bastante controlado. O que dá ao governo norueguês, como fiduciário do fundo, um nível de segurança de que esses investimentos rendem o que rende.
Nesse ano que passou o rendimento líquido do fundo foi mais de 14%. Há poucas coisas no mundo que rendem 14% ao ano. E esses 14% de lucros aqui do fundo global norueguês foram feitos em cima essencialmente de rendimentos e distribuição de lucros a partir da sua participação acionária, que é bastante pequena, nunca passa de 1%, nas principais empresas mundiais.
O que explica esse sucesso e este êxito das empresas norueguesas no Brasil? Eu tava falando do caráter assim dócil e maleável e compreensivo é dos investidores noruegueses. Porque tem também o estado norueguês por trás. Isso reforça a necessidade de manter relações políticas bastante saudáveis e de bom entendimento entre os países para que isso continue. Essas empresas no Brasil encontraram um ambiente regulatório muito similar existente aqui e muito favorável ao desenvolvimento e crescimento de empresas de estatais nos setores estratégicos.
Além disso, são empresas acostumadas a um alto regime de tributação. Então, quando se fala com empresas norte-americanas e europeias e japonesas, estão se lamentando a respeito do sistema tributário do Brasil: ‘É muito difícil, é terrível, a gente perde dinheiro com tantas taxas’. Os noruegueses estão acostumados a pagar taxa e pagam no Brasil impostos muito menores do que pagam aqui. O imposto comum na área de óleo e gás aqui na Noruega chega a 72% do faturamento da empresa. Um imposto de 72% você está muito longe de ver no Brasil. Isso também explica por que as empresas estão todas lá e elas criaram no Brasil um cluster, um sistema de produção.
É baseado no suprimento por elas mesmas. Pelas próprias empresas norueguesas, que fazem uma cadeia de provisão e suprimento no setor de óleo e gás e nos outros setores onde estão atuando. Isso é muito exitoso. E eles podem fazer isso, porque entendem parte da legislação brasileira que é igual a deles, aquela que diz: nesse mercado é preciso produzir aqui para poder crescer.
Então, as empresas que vão ao Brasil e crescem lá fazem parte do nosso desenvolvimento. Isso é o grande valor que tem os investimentos noruegueses no Brasil. Não são investimentos de bolsa, não são especulativos, são investimentos que produzem, que geram empregos e que geram riqueza no país. Para benefício dos dois países.
O senhor falou na questão da relação política que a gente precisa agora fazer um dever de casa. O que senhor entende por esse dever de casa?
O dever de casa é restabelecer os contatos de alto nível na relação política entre os dois países. E nisso nós estamos empenhados. E os dois países precisam através dos seus governantes dar maior visibilidade aos benefícios dessa relação.
Aquilo que você não cuida, não trata, não mostra, não estima e não trabalha constantemente é uma relação que arrisca perder. E se um fala mal do outro para esconder, às vezes as suas próprias dificuldades em determinadas áreas, isso certamente não é saudável para a manutenção da relação que nós queremos ter, num nível maduro, honesto e que busca resolver junto as dificuldades que nós encontramos.
Assim como o Brasil, a Noruega é um país dependente ainda do petróleo. A indústria do petróleo é muito forte. Mas a gente vive uma transição para as energias renováveis. Como é que o senhor vê essa discussão? É forte aqui também?
Aqui é bastante forte e é bom que no Brasil também seja. Agora, os países terão, necessariamente, as empresas terão, e os setores empresariais, os setores das economias, terão velocidade distintas nessa transição. A pressa de alguns não é necessariamente a pressa de todos. E é muito bom que alguns países estejam investindo pesadamente no desenvolvimento de novas tecnologias que tornem outras fontes de energia atraentes e econômicas para o mundo inteiro. E que essas fontes possam ser compartilhadas a preços justos e através de recuperação internacional como o mundo todo.
Porque o mundo todo não pode fazer transição energética. Inclusive porque não está disponível essa transição, nem em termos de fontes de energia, como também em termos de tecnologia, no curto espaço de tempo. Mas aqueles que estão desenvolvendo tecnologias têm interesse de começar a vendê-las. E o mundo todo vai para esse caminho. Então, quanto mais cedo o Brasil também se preparar, mais nossa competitividade fica resguardada.
Agora isso é como em determinados casamentos, em que a noiva diz assim: ‘Eu vou, mas não me empurre’. Todos irão para esse caminho. Mas cada um irá na sua velocidade. Os que têm que ir mais rápido são aqueles que estão como na Europa, perdendo suas reservas de óleo e gás. As reservas da Noruega estão se esgotando rapidamente. Novas frentes estão sendo abertas na exploração de ecossistemas muito frágeis, como no Mar de Bering. E o próprio discurso interno obriga a que se busque soluções alternativas, que são muito caras e que não estão aí ainda.
Mas a escassez dos recursos energéticos virá mais rápido na Europa do que em outras partes do mundo. O Brasil ainda tem muitos recursos e tá recém-iniciando a exploração dos seus recursos do pré-sal. Nós não precisamos ter essa pressa. Inclusive porque em termos de responsabilidade histórica o Brasil não é tão responsável assim pelas emissões e pela acumulação de carbono na atmosfera do nosso planeta.
Então, as diferenças entre os países e as possibilidades dos países têm que ser respeitadas. Fala-se muito hidrogênio verde, por exemplo. Fala-se também em hidrogênio azul. Hidrogênio azul é puro gás. É trocar seis por meia dúzia. Hidrogênio verde não tem tecnologias suficientemente acessíveis hoje de produção que possam transformar isso no combustível de amanhã. Possivelmente, eu fico com o possível do futuro, mas os países não farão, e os setores econômicos não farão todos essa transição na mesma velocidade.
Quem desenvolve tecnologia nesse sentido sai na frente e tem interesse de vender. Os outros têm interesse de ir se adaptando. E nós temos interesse também no Brasil e capacidade de desenvolver essas tecnologias de forma, não autônoma, mas de forma integrada com a economia mundial. Então, eu vejo como o movimento. Mas também não vejo como uma sangria desatada nos interesses brasileiros e na nossa capacidade de atuar.
Viajou a convite da Innovation Norway para a Nor Shipping 2022