Glasgow – Primeira deputada federal indígena do Brasil, Joênia Wapichana (Rede/RR), viajou a Glasgow com dois objetivos principais. Um é ajudar a colocar povos indígenas no centro do processo de negociação, atuando como protagonistas, e não somente como expectadores.
O segundo é trocar experiências com comunidades de outros países, levando de volta ao Brasil ideias de propostas legislativas que possam influenciar positivamente a atuação dos povos originários na preservação do meio ambiente.
Além do pioneirismo na Câmara dos Deputados, Joênia Wapichana é primeira advogada indígena no país a atuar pelos direitos dos povos originários.
Da comunidade Truaru da Cabeceira, na região de Murupu, em Boa Vista, ela faz parte do povo Wapichana, a segunda maior comunidade do estado de Roraima.
Ao ver o anúncio do acordo internacional de eliminação do desmatamento até 2030, com assinatura do Brasil, a deputada desconfia do cumprimento do acordo pelo país, mas comemora ter mais um argumento para pressionar o Executivo Federal.
Defende, no entanto, que recursos internacionais repassados ao país para o combate ao desmatamento sejam em parte repassados diretamente a comunidades indígenas, que atuam na linha de frente.
Uma possibilidade defendida é a criação de um fundo que possa ser diretamente acessado pelos povos originários, sem a necessidade de intermediários.
Uma iniciativa do tipo é negociada com governos estaduais da Amazônia Legal.
A deputada federal critica o fato de muitas vezes indígenas serem tratados como incapazes de gerir recursos financeiros.
Ela faz parte da maior delegação de lideranças indígenas da história da conferência do clima, que conta com mais de 40 representantes do Brasil.
Joênia veste vários chapéus ao mesmo tempo.
Como ativista indígena, mantém constantemente sua mentalidade de parlamentar e participa das reuniões da COP26, inclusive com povos indígenas de outros países, atenta às ideias de projetos de lei que pode levar de volta para casa.
Leia a entrevista concedida à Estratégia ESG, uma parceria da agência epbr com a Alter Conteúdo
Juliana Ennes: O que achou do anúncio da nova meta climática do governo?
Joênia Wapichana: A gente não espera desse governo mais nada. Ele assinar um acordo desses até coloca em dúvida se ele realmente leu ou se o acordo realmente traz alguma inovação. [O governo] já está flexibilizando um monte de coisas, já teve mudança no Código Florestal, mexeram no projeto de regularização fundiária, que ainda não está concluído.
Mas também é uma oportunidade de a gente cutucar [o governo], [já que] ele assumiu essa responsabilidade, pelo menos em relação à ilegalidade de atuação em terras indígenas.
Por exemplo, a gente acabou de ouvir, de novo, um caso de morte de povos isolados, na terra Yanomami. O que também deixa claro que o desmatamento ocorre pelas invasões com o garimpo.
JE: E sobre o acordo internacional de acabar com o desmatamento?
JW: O importante é que tem notícia de manifestação positiva do governo brasileiro em assinar o acordo, isso é importante. É importante também dizer que os países têm o investimento de US$19 bilhões acordado para combater o desmatamento e a degradação até 2030. São nove anos.
Me deixou bastante preocupada: como eles vão monitorar isso?
Se há alguma plataforma que vá mostrar os avanços para não ser simplesmente um discurso. Existe uma pressão para diminuir a emissão [dos gases] do efeito estufa. Hoje, o principal causador é o desmatamento.
A gente viu que o índice do desmatamento nos últimos dois ou três anos aumentou muito e agora parece que caiu, segundo o governo.
JE: Como tem sido até então o uso de recursos internacionais no combate ao desmatamento em relação aos povos indígenas?
JW: A gente precisa ter plataforma de como vai ser utilizado esse recurso, mas também para onde vamos aplicar.
Os povos indígenas já falam há muito tempo que é importante manter a floresta em pé, ter o cuidado especial com o solo, por isso bate sempre nos agrotóxicos. São coisas contrárias ao que acontece, do incentivo ao agronegócio.
A preocupação é se vai ter o investimento para proteger realmente quem está na floresta, porque são terras indígenas. Por isso, a gente tem o interesse de estar nesse processo, não como mero expectador, tendo conhecimento e respeito, mas como parte também da estratégia, como protagonista.
E receber o suporte financeiro para continuar fazendo as boas práticas que já fazem, como a proteção das terras indígenas, o que também protege o solo com seus produtos orgânicos. A visão da sustentabilidade.
O acordo reconhece a importância dos povos indígenas, o seu papel fundamental, mas vai ter essa parceria direta, porque é preciso incluir os povos indígenas nesse financiamento climático, para fiscalização e proteção.
JE: Tem crescido a pressão para que povos indígenas tenham acesso direto a fontes de financiamento…
JW: O governo tem que primeiro parar de atacar os povos indígenas, de incentivar a invasão das terras indígenas. Fazer discursos que geram ainda mais a questão do garimpo ilegal, porque isso só contribui com a crise climática. Tem que fazer o dever de casa, e quem vai cobrar dele o dever de casa.
Sobre o financiamento, tem uma questão específica, que é não equiparar as instituições indígenas às grandes instituições. Por exemplo, o Brasil ainda não tem regulamentado essa questão do terceiro setor. Na época da Dilma, houve uma tentativa.
Mas, para as organizações indígenas que nasceram com muita dificuldade depois de 1988, não tem essa experiência. Tem questões burocrática, exigências burocráticas. A gente tem o exemplo do fundo amazônico, que veio parar apoiar organizações indígenas.
E teve uma experiência boa através de consórcios, de ONGs, que não são indígenas. Mas, para ter realmente um financiamento direto, precisa ter uma questão específica de legislação.
JE: Quais os maiores impedimentos hoje para que indígenas recebam diretamente esses recursos?
JW: O banco muitas vezes exige que você manuseie mais de R$ 20 milhões. Qual é a organização indígena que já manuseou R$ 20 milhões?
Por outro lado, tem que fortalecer as organizações [indígenas], no sentido de que elas possam ter essa administração, mesmo que contratem especialistas do setor. Mas tem que entender que as organizações indígenas são pequenas.
Talvez pudesse criar esse fundo, que pode até ser o fundo amazônico, ou o fundo indígena, no sentido de terem projetos. Mas eles têm que ser construídos a partir dos povos indígenas, com essa legitimidade toda, e que haja esse olhar diferenciado para os povos indígenas.
JE: Que lições o Fundo Amazônia trouxe?
JW: A partir do exercício do fundo amazônico, eu fui começar a perceber que o processo era muito burocrático. Se você não se alinhasse a outra ONG, nunca ia poder acessar.
Mas existe essa expectativa, de que as organizações têm parcerias com outras instituições doadoras. Mas são pequenas, não são fundos públicos, são fundos privados, de doadores filantrópicos. Já tem uma pequena estrutura, você faz o contrato, faz o projeto. Diz em que vai aplicar, e têm sido feitos bons projetos.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR), por exemplo, que é a organização de que faço parte, tem contrato com a UNICEF, acabou de construir uma escola. Tem iniciativas de fundos que vieram de um órgão internacional.
JE: Você gostaria de ver um novo fundo sendo criado, especificamente para povos originários?
JW: É um pleito não só do CIR, mas da COIAB [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira], da Coica [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia]. Existe um movimento para que [o financiamento] seja específico e direto.
Acabei de vir de um evento em que falavam: “sem atravessadores.” Não são minhas palavras. Muitas vezes colocam os indígenas como incapazes de administrar. No passado, já teve muito problema por falta dessa regulamentação do terceiro setor.
Para questões de organizações indígenas, essa discussão ainda precisa ser avançada para reconhecer a capacidade. Com certeza, já tem ideias por aí.
JE: Quais desafios um fundo indígena encontraria?
JW: No caso do fundo, seria para as instituições serem representativas, para incluir comunidades.
Tem que pensar na realidade do Brasil hoje, que tem diferentes realidades. Mesmo em Roraima, há diferentes realidades, que também são diferentes do Amazonas.
Tem que contemplar esse mundo indígena, que tem 305 povos, de uma forma que não discrimine pequenas organizações, que contemple as diferentes realidades de outros biomas, com a sua biodiversidade.
Se fala muito mais da Amazônia do que do cerrado, por exemplo.
Para isso, tem que ter diálogo com povos indígenas, tem que saber se estão dispostos a isso.
Se esse fundo internacional é para os povos indígenas, o governo não pode atrapalhar isso. O Fundo Amazônia foi barrado, parou porque o governo achou que não era para ser aplicado.
Muitos governos pararam de financiar o fundo, porque o governo tinha a proposta de mandar para o agronegócio, e não para produtor, trabalhadores rurais, povos indígenas, comunidades tradicionais, extrativistas.
JE: Qual a principal mensagem você traz à COP26?
JW: A mensagem é de que tem que incluir os povos indígenas na tomada de decisão e no acesso ao fundo climático, acesso direto. São dois temas na COP.
Primeiro, vim trazer meu posicionamento frente à realidade dos jovens indígenas do Brasil. Segundo, apoiar esses encaminhamentos da delegação indígena que está aqui. Tem mais de 40 delegados indígenas presentes.
Mas vim também ouvir as propostas.
Vou levar uma proposta que ouvi agora, direcionada a essa questão do fundo climático direcionado aos povos indígenas. Vou pensar como podemos apoiar com uma proposição legislativa, para que acessem isso. Essa é a minha cabeça de parlamentar.
JE: Qual outro setor é importante para comunidades indígenas em termos de legislação?
JW: Uma área que me interessa bastante é a questão energética. É uma necessidade das comunidades indígenas.
Acho que é preciso mudar o entendimento de termelétrica, temos como dar exemplo com o uso de energia solar e eólica para o atendimento das necessidades das comunidades indígenas, incluindo escolas, postos de saúde, sem utilizar combustíveis fosseis.
Queremos mostrar que os povos indígenas têm interesse de participar dessas iniciativas. Tem comunidades que não querem, e a gente respeita. Quero ver o que a gente faz de proposições quando eu retornar.