Uma das questões mais polêmicas no debate que envolve o projeto de lei (PL) 6407/13 é a inserção das usinas térmicas a gás natural na base do sistema elétrico.
Mas por que defendemos que o PL 6407/13 incorpore as térmicas de uso ininterrupto no interior, a partir de leilões locacionais?
Em primeiro lugar, porque estabelecer políticas de Estado é uma das funções de um novo marco regulatório, a exemplo do novo marco de saneamento, aprovado no Congresso Nacional e sancionado pelo presidente da República, em que foi fixado o princípio da universalização, inclusive com metas bem definidas de implementação.
Entendemos que o gás natural canalizado é uma das utilities globais que fazem a diferença na qualidade de vida da população, não só pela sua incomparável segurança, eficiência e logística de abastecimento.
Mas por estabelecer um selo de competitividade capaz de levar novos investimentos para regiões, municípios e bairros onde o serviço está disponível. Além disso, é um indicador relevante para o meio ambiente – por reduzir a emissão de materiais particulados e gases do efeito estufa, enquanto a emissão de poluentes de determinados combustíveis líquidos é uma das vilãs da qualidade do ar nos grandes centros urbanos.
Logo, a universalização do acesso ao gás natural é uma meta inescapável se quisermos um Brasil mais avançado e mais competitivo.
Um segundo ponto importante é que os efeitos da pandemia de Coronavírus exigem uma releitura nesse momento crucial de definição de políticas públicas. De acordo com pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego aumentou em 11 estados no 2º trimestre, na comparação com os três primeiros meses do ano.
Diante de um panorama adverso como esse, é essencial que o novo marco legal do gás fomente um ciclo virtuoso de geração de renda e empregos. Para esse fim, nada melhor que a segurança jurídica de uma lei para atrair investimentos privados em projetos de infraestrutura. Será oportuno que a Nova Lei do Gás já surja com esse sinal que acelere os projetos.
O terceiro motivo é estratégico. O Brasil tem amplas reservas de gás natural, mas predominantemente em campos associados ao petróleo. Em média, o nível de reinjeção tem estado na casa dos 50 milhões de metros cúbicos/dia, mesmo antes da pandemia, chegando a 56 milhões de metros cúbicos/dia, o que representa o dobro do consumo médio de todo o segmento industrial brasileiro ao longo de 2019 (27,971 milhões de metros cúbicos/dia, de acordo com levantamento da Abegás divulgado em março).
Ainda que parte dessa reinjeção aconteça por motivos técnicos, a produção não tem dado vazão a todo o potencial existente por insuficiência da infraestrutura de escoamento, tratamento e de gasodutos de transporte, de um lado; e de falta de uma demanda firme para receber esse gás, de outro.
Para não reinjetar, a melhor receita é assegurar um comprador para esse gás, com uma regularidade que não comprometa a produção de óleo no campo. E qual pode ser o vetor para impulsionar essa demanda?
As térmicas inflexíveis na base. Se licitadas tão logo possível, em leilões com fator locacional, elas poderão entrar em operação no mesmo momento que novas rotas de escoamento, UPGNs e gasodutos de transporte estejam aptos para a operação.
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O quarto motivo a favor das térmicas inflexíveis é econômico. Não é de hoje que o sistema hidrelétrico vem sendo castigado pela sensível diminuição dos índices pluviométricos, especialmente no Sudeste, onde há maior densidade populacional e maior consumo de energia. Com chuvas abaixo do esperado, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) acaba recorrendo às usinas térmicas.
Elas são instadas a despachar imediatamente para preservar os volumes mínimos nos reservatórios, evitando os apagões. Esses despachos, entretanto, incluem usinas movidas a fontes mais poluentes e muito caras, que têm custo do combustível de até R$ 1670/MWh.
O efeito disso é que entre os anos de 2014 e 2019, período de chuvas abaixo da média, principalmente nas regiões de maior centro de carga, a conta de luz subiu em média 90%, 2,5 vezes acima da inflação do período (40%). Com usinas a gás natural na base, o custo do despacho térmico cairá muito porque o combustível custaria entre R$ 150/MWh e R$ 200/MWh com os usos dos recursos offshore do Pré-sal.
Com as térmicas operando de maneira contínua cairá o custo do despacho do gás (em plantas de ciclo combinado) em relação ao custo de plantas que operam em ciclo aberto (que consomem mais gás).
É válido acrescentar que a sinalização de demanda via termelétricas também cumpriria o salutar papel de atrair o desenvolvimento de mais recursos para projetos onshore (hoje circunscritos a experiências isoladas no Recôncavo Baiano e Bacia do Parnaíba), para os quais o custo do despacho corresponde a R$ 80/MWh a R$ 110/MWh.
Incentivar o desenvolvimento dos recursos onshore nas diversas bacias sedimentares brasileiras seria mais um fator indutor de crescimento, modicidade tarifária e desenvolvimento regional para o Brasil.
O quinto motivo é a segurança energética. Os aquíferos e reservatórios das hidrelétricas apresentam sinais de fadiga e novos projetos hidrelétricos só são permitidos a fio d’água. Sem reservatórios, não se armazena água. Logo, usinas ficam sujeitas à sazonalidade do período de chuvas. Em paralelo, as novas renováveis são fontes importantíssimas para uma matriz mais limpa, mas não controláveis e intermitentes, exigindo uma base firme para seu crescimento. Com a entrada maciça dessas renováveis, o Sistema Interligado Nacional já vem apresentando sintomas de vulnerabilidade (inclusive com um blackout e ilhamentos), que só não ficou mais visível porque o País simultaneamente passou por períodos recessivos ou de baixo crescimento.
As térmicas na base, distribuídas pelo interior, poderão contribuir decisivamente para mitigar um colapso em um esperado momento de crescimento econômico. Importante lembrar que esses projetos não saem do papel em passe de mágica. É preciso definir o planejamento agora, de modo que o País esteja preparado para níveis maiores de crescimento. Caberá à Nova Lei do Gás a missão de dar esse direcionamento.
Outro motivo, correlato, da importância das térmicas inflexíveis é possibilitar que os gasodutos a gás natural cheguem ao interior. O Plano Indicativo de Gasodutos de Transporte da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) aponta alguns projetos de novos gasodutos de transporte que poderão representar o início da interiorização de gás: Gasoduto Meio Norte, Gasoduto Brasil Central e Gasoduto Chimarrão.
Esses projetos, no entanto, serão viabilizados com muito mais rapidez se houver no pipeline gás novo e demanda firme.
Ao longo do percurso desses novos gasodutos será possível estimular a expansão de redes locais em cidades importantes, possibilitando uma maior competitividade das indústrias locais, a atratividade de novos negócios, além de desenvolver segmentos como o automotivo, residencial e comercial.
Com os gasodutos atravessando o interior, o gás chegará mais rapidamente ao Norte do Paraná, ao Oeste Catarinense, aos Pampas gaúchos, ao Triângulo Mineiro, ao Distrito Federal e a cidade importantes de Goiás, a polos ainda não plenamente atendidos no Nordeste e outras regiões. A interiorização do gás representa ganhos energéticos aumentando a eficiência do sistema e reduzindo as perdas.
A viabilização desse ciclo irá trazer mais competitividade para o mercado, uma vez que o aumento de oferta criará uma competição gás-gás, entre o importado (Bolívia-GNL) e o gás nacional. Quem sai ganhando é o consumidor.
Por esses e outros motivos é fundamental que o conceito de térmica na base conste na Nova Lei do Gás, abrindo espaço para que medidas infralegais das agências reguladoras nacionais possam realizar estudos técnicos e emitir resoluções que acelerem a implementação. É desejável que o conceito esteja na lei, e não somente em decretos, fator que propicia a devida segurança jurídica capaz de atrair aportes de capital em projetos de longo prazo.
Essa melhoria no PL 6407/13 poderá representar grande avanço para a implementação de um novo mercado de gás. Com gás nacional novo, os Estados irão ganhar royalties e os municípios ganham um novo horizonte de desenvolvimento.
Esperamos que a Câmara dos Deputados possa analisar, com a devida atenção, esses aspectos tão relevantes para construirmos juntos um marco legal que não só seja capaz de impulsionar o setor, e todos os elos da cadeia produtiva, mas que leve ganhos diretos e indiretos para todas as regiões do País e todos os brasileiros.
Marcelo Mendonça é Diretor de Estratégia e Mercado da Abegás (Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado)