Energia

Proposta sergipana demanda atenção para a preservação da segurança jurídica no setor de gás natural

Além de inoportuna, proposta de Sergipe para rever o contrato de concessão da Sergas poderá impor risco regulatório e de deterioração do ambiente de negócios, escreve Gustavo De Marchi 

Proposta de Sergipe para revisão da concessão da Sergas demanda atenção para a preservação da segurança jurídica no setor de gás natural. Na imagem: o autor do artigo: Gustavo De Marchi, sócio do Décio Freire Advogados e Vice-presidente da Comissão de Energia da OAB/RJ (Foto: Divulgação)
Gustavo De Marchi, sócio do Décio Freire Advogados e Vice-presidente da Comissão de Energia da OAB/RJ (Foto: Divulgação)

Segurança jurídica é um princípio fundamental para endossar os investimentos no setor energético, que demanda recursos volumosos e perenes.

Não sem motivo, o ministro de Minas e Energia (MME), Alexandre Silveira, constantemente vem citando a relevância desse elemento como base para o desenvolvimento do mercado de energia e óleo e gás.

Nesse contexto, merece atenção uma iniciativa empreendida no Sergipe que pode colocar em risco o instituto da estabilidade e o fiel cumprimento às leis e aos contratos vigentes: a abertura da audiência pública nº 01/2024, pela Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Sergipe (Agrese), que tem como objetivo receber contribuições sobre a revisão do contrato de concessão dos serviços locais de gás canalizado firmado com a concessionária local, a Sergas.

Trata-se de medida que demanda uma ampla discussão com os agentes setoriais e toda sociedade civil, especialmente tendo em vista que tal contrato de concessão, objeto da pretendida revisão, está em plena vigência desde 28 de janeiro de 1993.

O mesmo ano em que a antecessora da Sergas, antiga Emsergás S.A., foi criada pela Lei Estadual n° 3.305, formalizada pelo a partir da iniciativa do estado de Sergipe, como Poder Concedente, passando a se chamar Sergas somente a partir da Lei Estadual n° 5.578 de 25 de fevereiro de 2005.

Ao longo desses 31 anos de vigência, o contrato de concessão cristalizou direitos e obrigações – tanto para a concessionária como para seus acionistas e consumidores.

Ainda assim, a nota técnica Agrese/Camgas nº 07/2024, não se furta da intenção de colocar em discussão, no âmbito da audiência pública ainda neste mês de julho, alguns itens cruciais que são pilares do contrato de concessão:

  1. Coerência do valor mínimo de 20% como retorno dos investimentos para que seja atestada a viabilidade e sua possível compatibilização com metodologias a exemplo do WACC (Custo Médio Ponderado de Capital, do inglês Weighted Average Cost of Capital, indicador utilizado para medir o custo do capital de uma empresa e qual seu retorno mínimo);
  2. Remuneração de 20% sobre os investimentos e sua adequação ao atual cenário econômico nacional;
  3. Tópicos como múltiplos supridores de gás; Contratos de Suprimentos Flexíveis; Mecanismos de Compensação de valores não remunerados no ciclo de aplicação do preço de venda (Conta Gráfica); Critérios de Cálculo da Tarifa; dentre outros.

Todos esses itens – principalmente os que dispõem sobre o valor mínimo de 20% como retorno dos investimentos e a remuneração de 20% sobre os investimentos – e suas respectivas cláusulas formam parte da espinha dorsal do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão.

E a iniciativa unilateral de promover uma revisão, por si só, compromete princípios basilares como o ato jurídico perfeito, o direito adquirido, a segurança jurídica e a confiança legítima.

Impacto da revisão da concessão de gás em Sergipe e princípios jurídicos

Do ponto de vista jurídico, é indispensável verificar a natureza das referidas cláusulas diante do argumento constantemente aventado pelo Poder Público Estadual de que a prorrogação possuiria caráter meramente regulamentar, sendo, portanto, do arbítrio e alvedrio do Poder Concedente suas eventuais alteração ou aplicação em bases distintas das originalmente estabelecidas.

Portanto, para que essa discussão se processe de forma coerente e justa, inicialmente é preciso resgatar os fundamentos da distinção entre cláusulas econômicas e cláusulas regulamentares (ou de serviços) nos contratos de concessão.

Em linhas gerais, as cláusulas regulamentares indicam o modo de execução dos serviços. Assim, retratam as características técnicas das atividades e as dimensões de eventual obra que funcionará como suporte das atividades.

Bem como o grau de atualidade dos equipamentos utilizados na prestação, as tecnologias aplicadas, as metas de universalização dos serviços e desempenho, sua abrangência territorial, dentre outros elementos que indicam o modus operandi da concessão ou, em outras palavras, a forma de prestação dos serviços.

Tais condições, a priori, seriam modificáveis pela administração em função das necessidades e da dinâmica dos serviços, concessões e a mutabilidade inerente ao transcurso do tempo.

Relação equilibrada entre encargos e benefícios

Um exemplo que tipifica isso é o Mecanismo de Conta Gráfica. É um dos itens do contrato de concessão que ficou superado com transcorrer desses anos, em um cenário de múltiplos supridores.

Sua adequada regulamentação, bem pactuada, poderia transformá-lo em um instrumento importante para conferir transparência e previsibilidade no acompanhamento da parcela pass-through da tarifa de gás (moléculas + transporte).

De outro lado, as cláusulas econômicas retratam a equação econômico-financeira dos contratos, ou seja, a relação equilibrada entre os encargos e os correspondentes benefícios acordados entre as partes contratantes – relação que, vale registrar, constitui o cerne econômico do contrato administrativo.

Por sua natureza, tal relação econômico-financeira representa elemento imutável no âmbito da concessão.

Sua garantia, desse modo, deve se impor como contrapeso à peculiaridade das avenças administrativas, consistente na alterabilidade unilateral dos termos regulamentares contratuais por uma das partes (o Poder Concedente ou quem o represente na tutela do interesse público), o que não se confunde com o simples poder de alteração de regras de serviços.

Não é preciso ser especialista para identificar que as cláusulas que são o alvo principal da proposta de revisão contêm conteúdo estritamente econômico-financeiro, e, por isso, portanto, são protegidas do exercício unilateral quanto às alterações almejadas.

Tais cláusulas integram o ato jurídico perfeito – o contrato de concessão da Sergás.

E esse contrato não pode ser tocado por atos posteriores na medida em que foi concebido em conformidade com a legislação então vigente.

Nesse contexto, foi incorporado ao patrimônio jurídico da concessionária, de modo a fundamentar o próprio equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que deve ser preservado nos termos do artigo 37, XXI, da Constituição da República.

É patente que qualquer alteração contratual que desrespeite tais parâmetros ferirá o princípio da segurança jurídica.

A preservação das cláusulas econômicas de um contrato de concessão é fundamental, pois está em consonância com os princípios da boa-fé e da confiança legítima, que devem orientar as relações entre o Poder Público e seus contratados.

Isso demanda um acompanhamento nacional, é importante ressaltar que o modelo de contrato de concessão de Sergipe é similar ao adotado em muitos outros estados da Federação.

Portanto, qualquer eventual alteração indevida e intempestiva em sua estrutura certamente servirá como um grave precedente que poderá comprometer todo os investimentos em gás canalizado no país.

Resta enfatizar que a proposta de alteração da taxa de remuneração, por si só, representa uma violação unilateral do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, com evidentes impactos na segurança jurídica, aumento do risco regulatório e deterioração do ambiente de negócios.

Além do mais, tal convocação ocorre em um momento bastante inoportuno, considerando a iminente troca de acionistas.

Esse tema, por fim, exige todas as cautelas para evitar efeitos deletérios, não só para a concessionária local e o conjunto de seus consumidores, mas para todos os agentes da cadeia, de modo que sejam preservadas as noções de ato jurídico perfeito, direito adquirido, segurança jurídica e confiança legítima.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

Gustavo De Marchi é sócio do Décio Freire Advogados (DFA) e consultor jurídico da Abegás.  É vice-presidente da Comissão de Energia da OAB/RJ, titular do Corpo de Árbitros na Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem, vice-presidente do Setor Elétrico do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), coordenador nacional da Temática de Direito da Energia na Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB e consultor jurídico da FGV Energia.