Energia

Projetos de GNL de pequena escala e a necessidade de aprimoramento regulatório

Os projetos de distribuição de gás natural liquefeito (GNL) em pequena escala ganham cada vez mais espaço no Brasil e no mundo. Artigo por Felipe Boechem, André Lemos, Pedro Vargas e Stephani Oliveira.

GNL de pequena escala é promissor. Mas e a regulação? Na imagem, Isotanques do projeto da Eneva no Porto de Manaus (Foto: Eneva/Divulgação)
Isotanques do projeto da Eneva no Porto de Manaus (Foto: Eneva/Divulgação)

Alguns dos fatores determinantes para o crescimento no Brasil dos projetos de distribuição de gás natural liquefeito (GNL) de pequena escala — conhecidos no mercado como small scale LNG (ssLNG, na sigla em inglês) — são a limitada infraestrutura de gasodutos existente no país, o aumento da oferta e da competitividade do GNL no cenário internacional.

Outro atrativo importante é o fato desses projetos exigirem menos investimentos (capex) e terem uma implementação mais simples e flexível, incluindo a possibilidade de modular sua implementação e operação, de modo a acompanhar a variação da demanda local.

Some-se ainda a estes fatores a intensificação da transição energética rumo a uma matriz mais limpa, que tem estimulado a substituição de combustíveis fósseis mais poluentes por gás natural.

Projetos de GNL em pequena escala em desenvolvimento no Brasil ilustram bem este cenário

O projeto Azulão-Jaguatirica, desenvolvido pela Eneva, envolve o transporte terrestre de GNL em tanques criogênicos desde o campo de Azulão (Amazonas) até à UTE Jaguatirica (Roraima) em um percurso de 1.100 km de rodovia.

A opção pelo transporte rodoviário de GNL, neste caso, certamente se justifica, dentre outros fatores, pela ausência de infraestrutura de gasodutos na região e pela necessidade de implementar o projeto dentro do prazo exigido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), para entrada em operação comercial da usina.

Há outros projetos de ssLNG em estudo ou desenvolvimento, com foco em clientes não térmicos localizados em áreas ainda não atendidas pela malha de gasodutos.

Nesse sentido, a SCGás está desenvolvendo um projeto para levar gás natural comprimido (GNC) ou GNL por meio de caminhões para os municípios de Canoinhas, Três Barras e Mafra, no Planalto Norte Catarinense, localidades descobertas pela malha da distribuidora local, sendo o foco principal o consumo industrial.

Trata-se do que o mercado chama de gasoduto virtual que tem por objetivo antecipar a oferta de gás a um determinado mercado, até a efetiva chegada da malha de gasodutos.

Regulação para o GNL no Brasil e as mudanças que estão sendo debatidas

No Brasil, a atividade de GNL em pequena escala é classificada como distribuição de gás natural liquefeito a granel e está sujeita à regulação da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Atualmente, a portaria ANP 118/2000 regulamenta o procedimento para obtenção de autorização para a atividade de distribuição de GNL a granel, bem como para a construção, ampliação e operação das centrais de distribuição.

De acordo com a norma, a distribuição a granel depende de autorização prévia da ANP e compreende as atividades relacionadas à aquisição ou recepção, armazenamento, transvasamento, controle de qualidade, e comercialização do GNL por meio de transporte próprio ou contratado, podendo também ocorrer em conjunto com a atividade de liquefação de gás natural. Somente sociedades brasileiras podem ser autorizadas a exercer tais atividades.

Dentre os documentos necessários para a obtenção da autorização, destaca-se a necessidade de o solicitante comprovar que detém uma central de distribuição de GNL própria ou de terceiros, devidamente autorizada pela ANP a operar.

A central de distribuição de GNL consiste na área devidamente delimitada que contém os recipientes destinados ao recebimento, armazenamento e transvasamento de GNL, que deve ser construída e operada de acordo com as normas internacionalmente adotadas.

Desde a publicação da referida portaria há mais de duas décadas, o mercado brasileiro de gás natural vem passando por profundas transformações e houve um significativo desenvolvimento de novas tecnologias e modelos de negócio de GNL em pequena escala.

Segurança jurídica

Diante dessa conjuntura, os atuais projetos muitas vezes não se adequam perfeitamente aos padrões adotados pela Portaria ANP nº 118/2000, gerando algum nível de insegurança jurídica em sua estruturação.

Sensível a este novo cenário, a ANP iniciou o processo de revisão da portaria ANP nº 118/2000 em 2020. Contudo, tal processo ainda não foi finalizado e consta da agenda regulatória para o biênio 2022-2023.

A principal crítica de mercado é que a portaria ANP nº 118/2000 não abrange todos os possíveis modelos de negócios para a estruturação desses projetos. Nesse sentido, analisamos a seguir alguns dos pontos passíveis de aprimoramento na visão dos agentes de mercado.

Primeiro, embora a atual regulação exija que a sociedade autorizada possua uma central de distribuição, é possível que um projeto de ssLNG seja estruturado sem a necessidade de tal instalação.

Por exemplo, é caso em que os containers com GNL transportados por meio de navios sejam içados diretamente para um caminhão capaz de transportá-los, como ocorre em outros projetos pelo mundo.

Segundo, a portaria também não trata de forma mais abrangente de algumas alternativas de abastecimento que permitiriam potencializar os projetos de ssLNG, como a possibilidade de implementação de pontos ou postos de abastecimento avançados, os quais poderiam ser alimentados a partir da central de distribuição e utilizados para o abastecimento de caminhões movidos a GNL.

Terceiro, a portaria ANP nº 118/2000 não diferencia os modelos de negócio de distribuição de GNL para uso próprio dos projetos para uso de terceiros, como faz, por exemplo, a resolução ANP nº 41/2007, que regula a atividade de distribuição de GNC. Esta diferenciação poderia resultar em uma simplificação de projetos de distribuição de GNL para uso próprio.

Quarto, a atividade de distribuição de GNL, a granel prevista pela Portaria ANP nº 118/2000, não abarca expressamente a construção e operação de instalações de regaseificação do GNL após o seu transporte. A depender do modelo de negócio, essa responsabilidade poderá ser do distribuidor ou do consumidor final. Isso levanta o debate sobre a necessidade de autorização para construção e operação da instalação de regaseificação nos termos da Resolução ANP nº 52/2015.

Outra demanda da indústria é que a regulação ou as autorizações outorgadas incluam expressamente dutos e instalações necessárias para a estruturação de projetos de ssLNG, o que traria maior eficiência e segurança aos agentes de mercado durante o processo de estruturação e implantação do projeto.

Não obstante os avanços recentes, um ponto que ainda merece atenção do mercado se refere a iniciativas de alguns estados no sentido de regular a distribuição de GNL por outros modais que não os gasodutos de distribuição.

A atividade de distribuição de GNL a granel não deve se confundir com os serviços locais de gás canalizado, que são explorados pelos estados diretamente ou mediante concessão, nos termos do parágrafo 2º do artigo 25º da Constituição Federal.

Em que pese a Nova Lei do Gás, a Lei Federal nº 14.134/2022, ter deixado claro que o monopólio estadual previsto pela Constituição Federal somente abrange a distribuição de gás canalizado (artigo 3º, inciso XVII) e que a distribuição de GNL é atividade de competência federal, alguns estados estabelecem a competência da agência reguladora estadual para regular e fiscalizar a atividade de distribuição de GNL, e, em alguns casos, preveem a exclusividade ou responsabilidade da concessionária estadual dos serviços de gás canalizado para a execução de tal atividade.

É o caso do Maranhão, que por meio da Lei 11.662, de 31/03/2022, definiu que compete ao estado explorar, diretamente ou mediante concessão, os serviços de gás canalizado em seu território, incluído o fornecimento direto a partir de gasodutos de transporte e terminais de GNL e outros modais de maneira a atender às necessidades dos setores industrial, domiciliar, comercial, automotivo, térmico e outros.

Sobre este tema, vale mencionar que a diretoria da ANP, por meio da resolução de Diretoria ANP nº 40/2022, autorizou a Procuradoria Federal junto à ANP a adotar os procedimentos necessários para o questionamento, no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), de normativos de entes subnacionais que pretendam dispor sobre temas que invadam as competências regulatórias e normativas da ANP dispostas na Nova Lei do Gás e em seu decreto regulamentador.

A modernização da Portaria ANP nº 118/2000 para prever regras adequadas aos modelos de negócio de ssLNG mais atuais e o reforço da competência da União para regular sobre atividade de distribuição de GNL a granel são ações que podem contribuir para trazer mais segurança jurídica para a estruturação e desenvolvimento de projetos, que possuem elevado potencial para gerar desenvolvimento econômico e social ao interior do país e às regiões distantes das fontes de suprimento ou da malha de gasodutos de transporte de gás natural.