Longe da pretensão de exaurir o tema — há muito discutido no setor de energia e referenciado no título — propomos o início desta explanação a partir de duas premissas: (i) defender a liberdade não é um trabalho simples; e (ii) o objetivo de uma sociedade civilizada é o progresso.
Dito isso, a proposta de desenvolvimento deste artigo se baseará na exploração das premissas acima introduzidas na seguinte dimensão: as vertentes “liberdade” e “progresso” promovem evolução social. Mantenhamos isto em mente durante toda a leitura.
Em tempos de Revolução Industrial 4.0 e da economia disruptiva — completamente dinâmica, da forma como a conhecemos — inevitavelmente, a tecnologia e as fontes inesgotáveis da criação humana se manifestam previamente à regulamentação.
No setor elétrico, especificamente, as modernizações mais expressivas vêm na esteira do Projeto de Lei nº 414/21, intensamente decantado em todos os fóruns especializados. Ademais, para além das questões conjunturais, aguarda-se a vinda de uma reformulação estrutural, circundando o elemento mais importante de todos os mercados, qual seja: a formação de preço.
Inobstante o sucesso do paradigma de 2004 (trazido pela Lei nº 10.848), o maior vetor de expansão setorial sempre foi determinado pelo mercado, que, como dito, transborda as linhas da regulamentação (primeiro).
O que, em outras palavras, é dizer: por mais que aplaudamos a sistemática dos leilões regulados que foram introduzidos pelo que se convencionou chamar de “Novo Modelo”, não se deve almejar que o longo prazo de 42 meses para livre migração de todos os limites de carga se materialize, exatamente, como foi concebido no relatório da Comissão Especial do PL.
Opiniões divididas permeiam toda área; ocorrerá aceleração desse calendário proposto pelo Ministério de Minas e Energia? E o preço por oferta vai chegar ainda antes do pleito eleitoral? Ou, com o último movimento parlamentar, segundo o qual o requerimento de urgência restou prejudicado, teremos mais delongas na tramitação do Projeto de Lei mais aguardado pelo setor de energia nos últimos tempos? Avancemos.
Para aprofundar:
- Shell vê PL 414 como “conforto jurídico” para investir em renováveis
- Diga não aos jabutis da modernização do setor elétrico, por Mariana Amim
- As tarifas de energia no contexto da modernização do setor elétrico
Preço por oferta
O nosso processo de formação de preço se dá por modelos computacionais. Convém fazer um sintético detalhamento: o preço de curto prazo da energia é calculado com base no custo marginal de operação (CMO). O Operador Nacional do Sistema (ONS) utiliza, além dos tradicionais modelos “Decomp” e “Newave”, as adequações relativamente recentes do “Dessem”.
Portanto, é válido asseverar que, no Brasil, a cadeia de modelos extraídos dos computadores — com diferentes horizontes e graus de detalhamento — define, em ordem crescente de custo, uma lista das usinas que devem ser demandadas para atender toda a carga conectada no sistema.
O custo de acionamento da última usina, diga-se, portanto, a “usina marginal”, forma o CMO dentro do que conhecemos como ordem de mérito (para despacho). Com base no CMO, é definido o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), que é, com efeito, o preço do mercado de curto prazo no país.
E, assim, dá-se origem a uma política de operação próxima da realidade, consubstanciada no mencionado parâmetro — que, nos dias atuais, alcança as frações horária e semi-horária. Há bons 10 anos atrás, falava-se no atingimento dessa granularidade, ou seja, na fragmentação em partículas menores no tempo, para dotar os cálculos de maior exação. Chegamos nesse momento.
Destarte, o modelo acima é conhecido como “despacho por custo”, de acentuada característica centralizada, onde o operador do sistema determina o fator hidrológico por modelos computacionais de otimização e, assim, minimiza o custo total de produção, por meio de uma ordem estratificada de despachos das usinas.
Nesse molde, é competência de uma única entidade — o ONS, no caso brasileiro — gerenciar uma enorme quantidade de informações sobre cada agente relevante, bem como parâmetros que comportam muita imprevisão, como meteorologia, demandas futuras contra cenários de oferta e outros.
Portanto, para gerenciar todo o sistema interligado nacional (SIN), o ONS tem papel preponderante na gestão integrada e na busca incessante pela dita otimização. Com tais características, o despacho por custo, mesmo que busque o melhor embasamento técnico, não alcança a totalidade de riscos dos agentes e promove, em alguma proporção, assimetrias e distorções.
E, se, ao invés de se determinar o sequencial das usinas a serem utilizadas por meio da modelagem probabilística computacional, fossem adotadas ofertas de geração em âmbito competitivo?
Atingimos o ápice do nosso “discorrer” sobre o preço por oferta e para tanto, requeremos atenção ao ponto: a formação de valor pelos “bids” de geração seria adotada para cotejar as curvas de produção e preço dos geradores concorrentes vis-à-vis as cargas elegíveis em suas exigências — que se incumbiriam de propor curvas de consumo e respectivo preço para o mesmo período.
O processo de competição seguiria o racional econômico com o qual já se acostumaram os players setoriais. Ademais, uma das maiores vantagens do preço por oferta, quando comparado com o despacho pelo custo (modelo atual), é que os agentes podem utilizar sua própria assunção de risco para definição de sua oferta de geração ou consumo — e, desse modo, formatar o sistema com menos intervencionismo.
Esta diversidade contribui para uma operação mais robusta e para a cobertura de todas as dimensões da precificação, produto a produto, certame a certame.
Em competição, os mecanismos de formação de preços por ofertas tendem a produzir maior eficiência econômica. Isto, de forma simplista, poderia ser traduzido pelo seguinte enunciado: os agentes de geração seriam incentivados a ofertar seus custos marginais de produção [1].
E os preços seriam determinados entre fases muito estreitas: primeiramente, teríamos as valorações do comprador marginal e as do ofertante marginal. Depois, restaria patente que as determinações dos preços seriam diferentes em cada polo. Cada parte atribuiria um valor menor ao bem que recebe em relação àquele do qual abdica.
A relação de troca — isto é, o preço — não seria o produto de uma igualdade das valorações feitas pelos agentes, mas, ao contrário, é resultado da linha média de discrepância entre essas valorações. Assim funciona a teoria econômica, nos termos clássicos de uma negociação.
Vertente econômica defendida
Não obstante haver críticas, entendemos ser prudente a defesa da metodologia ora descrita. Já que o traço evolucional do setor demanda robustez e previsibilidade, convém apontar que o método já está maduro para testes — estes, já foram contratados pelas entidades setoriais mais eminentes, como se destaca, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
De todo modo, e com o devido respeito à modelagem vigente, a eventual adoção do método em apreço remonta estudos desde a década de 1990 no Brasil — ou seja, está longe de ser modismo.
E é possível identificar sinais concretos de que o mercado, em certa medida, clama por uma sistemática menos probabilística e mais assertiva, por assim dizer.
Conclusão
Não há que se confundir o anseio pelo avanço do setor de energia com açodamento. Mudar a chave abruptamente poderia colocar em risco uma oportunidade de aprofundar ainda mais os estudos. Por isso, a expressão de ordem na CCEE, entusiasta e patrocinadora da medida é: “evitar transições que tenham vieses mais emocionados”.
Executivos do setor têm sido ouvidos em profusão, no sentido de colaborar com suas experiências. Uma das preocupações com a pressa seria a afetação do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE). Ou seja, há que se ter discernimento e razoabilidade.
O que não se pode olvidar é que, na época do RESEB (Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico), quando o saudoso Lindolfo Paixão elencou a “tríade legal da reforma” — Leis nº 8.987/951 (Lei das Concessões), n° 9.074/952 (Lei das Outorgas) e nº 9.427/963 (Lei da Criação da Aneel) — como principais balizas, o distanciamento da tarifa pelo custo e a adoção do price cap parecia um sacrilégio sob os olhares mais antiquados.
No entanto, o mercado livre prosperou e seu marco legal — cujas bases se assentaram com a Lei nº 10.848/044 (Lei da Comercialização) e Decreto 5.163/045 (que regulamenta a comercialização) — seguiu respaldado com o contorno disciplinar necessário.
Sendo assim, volta-se às palavras introdutórias deste material, nas quais citávamos que a defesa da liberdade não é missão simples. É cediço que o PL nº 414/2021 (da modernização), por estar sendo modificado pela Câmara dos Deputados e por ser discutido em substitutivo, provavelmente, regressará para chancela do Senado Federal, após a respectiva aprovação Comissão Especial da Câmara, ora instituída para avaliação.
Todavia, mantém-se a expectativa de que a discussão em tela continue aquecida, pois ela é uma consequência inexorável de todo o conjunto de normas que está sendo apreciado pelo legislativo. Mais: ela se confunde com a própria evolução do modelo em si e no acréscimo da liberdade neste mercado.
Inevitavelmente, com a formação de preço por oferta, teremos menor risco de judicialização, sinais econômicos mais fidedignos, distribuição de risco entre um número maior de players competidores por certame e o prestígio da própria inteligência coletiva do mercado.
Daniel Steffens e Vinícius Oliveira são sócios de Energia e Infraestrutura do Urbano Vitalino Advogados.
[1] Vide livro “As seis lições” – Ludwig Von Mises LVM Editora