Combustíveis e Bioenergia

Preço do QAV cai 30%, mas passagens aéreas não acompanham; entenda o que está em jogo

Companhias aéreas encaram redução de custos com cautela enquanto enfrentam pressão do governo federal para ampliar acesso aos voos

Preço do querosene de aviação (QAV) cai 30%, mas passagens aéreas não acompanham queda; entenda o que está em jogo. Na imagem: Vista aérea das obras de ampliação do Aeroporto de Internacional de Guarulhos – Governador André Franco Montoro, também conhecido como Aeroporto de Cumbica (Foto: Delfim Martins/Portal da Copa, CC)
Baratear passagens aéreas, marca de governos passados do PT, é uma meta do governo Lula (Foto: Delfim Martins/Portal da Copa)

RIO – As companhias aéreas têm convivido com ventos favoráveis este ano, com a queda dos preços do querosene de aviação (QAV) no Brasil. O combustível, responsável por cerca de 40% dos custos das empresas do setor, voltou a se aproximar dos patamares pré-guerra da Ucrânia, ao mesmo tempo em que a demanda por voos domésticos retorna aos patamares pré-pandemia.

Depois de um 2022 de forte pressão sobre os custos das companhias áreas, em função dos picos do petróleo no mercado internacional, o preço do QAV da Petrobras, responsável por suprir mais de 90% do mercado doméstico, acumula uma redução de 31,7% em 2023, até agosto, nos pontos de entrega às distribuidoras.

Já foi maior. Até junho, após sucessivos cortes, o QAV da Petrobras chegou a acumular uma queda de 35% no ano. A tabela é reajustada mensalmente e, em julho, a companhia começou a repassar o aumento nos preços internacionais. Analistas apontam que os preços do mercado doméstico estão alinhados ao mercado externo.

Junto com a queda dos preços do QAV, o valor das passagens também está caindo este ano, mas em ritmo menor.

De acordo com dados da Associação Nacional de Aviação Civil (Anac), no acumulado do ano, até maio, a tarifa média real das três principais companhias aéreas do país (Azul, Gol e Latam) era de R$ 572,7, uma retração de 8,5% na comparação com igual período do ano passado – quando o início da invasão da Ucrânia pela Rússia desencadeou uma inflação no combustível.

O governo federal tenta ampliar o acesso aos voos, uma marca de gestões passadas do PT. O ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), já defendeu publicamente uma nova política de preços para o QAV.

As companhias aéreas, no entanto, têm adotado um discurso de cautela sobre o repasse da desvalorização do QAV para as tarifas aéreas.

O que você vai ver nesta reportagem:

  • Empresas aéreas justificam repasse
  • Governo cobra redução das passagens
  • Preços do QAV voltam aos níveis pré-guerra
  • Como o preço do combustível afeta as passagens?
  • É possível reduzir os preços do QAV no Brasil?
  • Momento é favorável para novos investimentos
  • Mudanças regulatórias aumentam competição
  • Acesso à infraestrutura existente gera debate

O que dizem as empresas aéreas

O presidente da Gol Linhas Aéreas, Celso Ferrer, considera que, apesar da queda mais recente dos preços do QAV, o combustível ainda está sujeito a volatilidades.

Ele acredita que, diante deste cenário, as companhias devem assumir uma “postura de mais cautela” em seus planos. O executivo explica que os voos são vendidos muitas vezes com 11 meses de antecedência e que as empresas precisam calibrar com cuidado os custos com o derivado.

Ferrer cita que o QAV brasileiro continua sendo “um dos combustíveis mais caros do mundo” e 49% mais alto do que o combustível que a Gol tem acesso, por exemplo, nos EUA.

“Estamos tentando manter um modelo de precificação, onde continuamos com tarifas bem baixas […], mas, ainda assim, com muita cautela nisso quando vai no gerenciamento voo a voo”, disse no fim de julho, durante teleconferência com analistas.

“Temos expandido tarifas promocionais, e isso tem até sido refletido nos índices de inflação recentemente, mas fazemos isso com cautela, porque essa montanha russa mais o delay [atraso], tanto do combustível quanto do câmbio, precisa olhar para eles de uma maneira que eles podem ir e voltar muito rápido. O setor ainda é muito exposto a isso.”

Ao comentar sobre o aumento do preço da Petrobras, este mês, o CEO da Latam Brasil, Jerome Cadier, afirmou que o setor convive há bastante tempo com uma grande volatilidade e que, portanto, as empresas devem continuar sendo conservadoras.

O vice-presidente de Finanças na Azul Linhas Aéreas, Alex Malfitani, por sua vez, destacou que a queda do preço do combustível tem permitido à empresa adicionar mais voos aos finais de semana e mais voos noturnos, retomando as utilizações pré-pandêmicas.

“Mas temos que ter um pouco de cuidado porque o combustível ainda é mais alto em comparação com os níveis pré-pandêmicos, afirmou o executivo, na semana passada, em conversa com analistas e investidores.

Governo cobra redução das passagens

Baratear as passagens aéreas é uma meta do governo Lula. O ministro dos Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), prometeu criar o Voa Brasil, programa para vender passagens aéreas a R$ 200, com foco inicial em aposentados, pensionistas e estudantes, além de pessoas com renda de até R$ 6,8 mil.

A ideia é aproveitar os períodos de baixa temporada e ociosidade, como os meses entre março e maio e entre agosto e novembro.

O governo cobra das companhias aéreas passagens mais baratas. No mês passado, em reunião com a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), cobrou estudos técnicos para viabilizar a redução das passagens.

“Claro que sabemos que existem outros fatores que impactam [os preços da passagem, além do QAV], por isso precisamos fazer um esforço para que seja apresentada uma proposta do setor bastante objetiva”, disse o ministro na ocasião.

Segundo Silveira, é preciso clareza do setor, “para que façamos um esforço para a redução dos valores das passagens e aumento da quantidade de pessoas que possam voar”.

O presidente Lula reforçou a cobrança: “vamos chamar as empresas de aviação para conversar sobre o porquê não temos aviões regionais e [sobre] o preço alto das passagens”, escreveu nas suas redes sociais, no início do mês.

Procurada, a Abear optou por não se posicionar para esta reportagem.

Preços do QAV voltam aos níveis pré-guerra

A queda nos preços do combustível de aviação começou a acelerar, sobretudo, após fevereiro – refletindo a melhora nos preços do barril de petróleo no mercado internacional.

Em julho, o preço médio dos produtores e importadores era de R$ 3,45 por litro, uma alta de 2,7% em relação a junho, mas próximo dos valores nominais (sem correção inflacionária) cobrados em janeiro de 2022 – mês anterior à eclosão da guerra da Ucrânia, segundo dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Veja, abaixo, a curva dos preços do QAV desde janeiro de 2019 (sem correção inflacionária)

curva dos preços do QAV desde janeiro de 2019, sem correção inflacionária (Fonte: ANP)
Fonte: ANP

Como o QAV afeta as passagens?

O combustível é um componente importante dos preços das passagens, mas as tarifas sofrem impactos também de questões como oferta e demanda. Um dos desafios nos últimos anos foi, por exemplo, o balanço entre a previsão de demanda de passageiros e o estoque de QAV.

Especialistas apontam que um dos principais motivos para a percepção de descolamento, hoje, entre os preços dos combustíveis aéreos e das passagens é o câmbio.

“A referência [dos combustíveis] com base internacional acaba encarecendo os preços aqui”, diz o pesquisador do Grupo de Energia e Regulação da Universidade Federal Fluminense (Gener/UFF), Francisco Raeder.

Do volume total de QAV consumido no Brasil, a maior parte é produzida nas refinarias nacionais. Outros 25% são importados, sobretudo, pela Petrobras, pois a companhia tem infraestrutura para garantir o atendimento às especificações necessárias para a comercialização do produto importado.

Nos últimos anos, a participação de volumes importados no mercado brasileiro tem crescido, dado o aumento da demanda e a estagnação da capacidade de refino. A maior parte do volume importado atende aos mercados do Sudeste, onde estão localizados os dois principais aeroportos do país, Guarulhos/Cumbica (SP) e Galeão (RJ).

Os preços para o combustível de aviação da estatal têm reajuste mensal e são definidos com base em fórmulas contratuais negociadas com as distribuidoras. O QAV não foi incluído na reformulação da política de preços de combustíveis da Petrobras anunciada em maio deste ano, que ficou restrita ao diesel e à gasolina.

“Nossos preços buscam o equilíbrio com os mercados nacional e internacional e, ao mesmo tempo, mitigam a volatilidade diária das cotações de referência”, afirma a estatal em nota.

A Petrobras foi responsável por 93% das entregas de QAV no Brasil nos cinco primeiros meses do ano, segundo a ANP, enquanto o restante foi entregue pela Acelen (BA) e Ream (AM), privatizadas no programa de desinvestimentos d programa de desinvestimentos a estatal.

Recentemente, um novo player entrou nesse segmento: a 3R Petroleum, que assumiu a operação da Refinaria Clara Camarão (RN), em junho, e também vai entregar combustível de aviação ao mercado regional.

Por ser um combustível que tem regras específicas de segurança e qualidade, há pouca flexibilidade para intercâmbio do QAV entre as diferentes regiões do país, por isso, cada refinaria atende principalmente a região onde está localizada.

É possível reduzir os preços do QAV no Brasil?

As discussões sobre a redução dos preços passam, primeiro, pela questão de como fazer os combustíveis chegarem de maneira mais eficiente aos aeroportos e novos investimentos em infraestrutura.

A falta de interligação por meio de dutos para os aeroportos faz com que os custos para a movimentação dos produtos no Brasil sejam maiores do que nos Estados Unidos, por exemplo, onde praticamente todos os aeroportos são conectados.

“Essa acessibilidade de menor custo logístico para fazer o QAV chegar aos aeroportos no Brasil é uma discussão necessária, implica em um maior custo interno”, diz o diretor de mercados de petróleo da S&P Global Commodity Insights, Felipe Perez.

No mercado, há quem defenda que uma das chaves para a redução dos preços do QAV no país é a diversificação de atores na cadeia de distribuição. Hoje, três grupos concentram essa atividade: Raízen, Vibra e Air bp.

Críticos dizem que as maiores distribuidoras praticam altas margens, o que encareceria os combustíveis de aviação no país. Especialistas, no entanto, afirmam que os preços nacionais estão em linha com o mercado internacional, principalmente considerando o mercado americano, que concentra o maior parque de refino do mundo.

Para o Instituto Brasileiro do Petróleo e do Gás (IBP), não é cabível comparar os preços do mercado externo e o nacional. “As estruturas de preços dos países são distintas e não temos dados abertos suficientes”, disse o instituto em nota.

O IBP defende que uma eventual redução nos preços do QAV no Brasil virá de uma maior competição no refino, com o aumento da concorrência interna.

Há interesse de novos entrantes, principalmente no elo da distribuição. Em 2022, a Gran Petro conseguiu acesso ao terminal de Guarulhos e, com isso, passou a competir no suprimento.

A Sol Aviation, do grupo Rede Sol, também conseguiu acesso ao aeroporto recentemente e planeja atender inicialmente à aviação privada. A companhia tem intenção de expandir a atuação para outros aeroportos nas demais regiões do país.

Momento é favorável para novos investimentos

Um dos motivos que tem atraído o interesse de novos players pelo mercado de QAV no país é o crescimento da demanda por voos no Centro-Oeste e Norte do país, devido sobretudo à demanda do agronegócio.

A Air bp, uma das três maiores distribuidoras de QAV no Brasil, diz ver “enorme potencial de crescimento” no mercado de aviação brasileiro e elegeu o país como um dos focos para investimentos no mundo nos próximos anos.

A companhia espera concluir até o fim do ano a construção de um novo ponto de suprimento em Paulínia, de olho na crescente demanda do centro-oeste. Está nos planos um projeto de abastecimento no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, para atender voos gerais e comerciais, com previsão de início das operações para 2024.

Perez, da S&P, aponta que o momento é favorável para discutir a atração de novos investimentos para a infraestrutura de QAV no país, dado que esse é um dos combustíveis líquidos que terá demanda crescente no longo prazo, mesmo com a transição energética.

“A população cresce, a demanda por voos cresce, o Brasil precisa criar eficiência para a chegada dos combustíveis aos aeroportos”, diz.

Ele acrescenta ainda que o Brasil pode aproveitar para discutir a ampliação da infraestrutura de abastecimento considerando a entrada de novos produtos, como o combustível sustentável de aviação (SAF).

“O Brasil perde atratividade se não oferecer o SAF com estabilidade. Isso vai ser um ponto muito importante para a competitividade dos aeroportos brasileiros no ambiente internacional”, afirma.

Mudanças regulatórias aumentam competição

Há alterações regulatórias em curso para fomentar a competição nesse segmento. A ANP é responsável pela infraestrutura associada aos combustíveis de aviação até a chegada ao aeroporto, enquanto a Anac regula as movimentações dentro dos aeroportos.

Uma resolução da Anac publicada este ano (717/2023) demanda que as operadoras dos aeroportos enviem até o fim de agosto uma proposta de Termo de Condições de Acesso às infraestruturas de abastecimento em Guarulhos (SP) e no Galeão (RJ). Os critérios de acesso serão discutidos com os potenciais interessados.

Em novembro de 2022, o tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou as três companhias e a GRU Airport por restrições no acesso, com multas que somam R$ 150 milhões.

No ano passado, a ANP publicou uma resolução com os critérios para o acesso não discriminatórios a terminais aquaviários e dutos. Ainda está na pauta da agência uma discussão sobre os papéis de distribuidores e revendedores de combustíveis de aviação.

Acesso à infraestrutura existente gera debate

Uma das questões que gera entraves no mercado é o acesso à infraestrutura existente. Os players com histórico de atuação nesse segmento afirmam que devem receber contrapartidas pelo acesso à infraestrutura.

“Quem investiu tem que ter o direito de prioridade ou ser reparado pelo investimento que fez”, diz uma fonte com amplo conhecimento do segmento.

A Petrobras afirma que está disposta a atender qualquer distribuidora que atenda aos requisitos legais e regulatórios. Nos últimos anos, inclusive, a estatal passou a disponibilizar combustíveis de aviação em Guarulhos por terminais rodoviários, fora do aeroporto, o que facilita o acesso a outras distribuidoras.

O vice-presidente de comercial B2B da Vibra, Bernardo Kos Winik, defende que é necessário que os novos agentes do mercado de distribuição entrem com uma participação financeira para ter acesso à infraestrutura, dado que o pool de empresas em Guarulhos fez investimentos na construção e manutenção desses equipamentos.

“A Vibra não se opõe à entrada de novos entrantes, desde que estes atuem de acordo com os devidos padrões operacionais, com comprovação de know-how, certificações atualizadas e demais sistemas de qualidade e conduta necessários à segurança deste mercado tão específico e crítico”, diz.

Já a Air bp afirma que está trabalhando com os reguladores na revisão dos padrões de acesso à infraestrutura e o abastecimento de combustível de aeronaves nos aeroportos.

“A empresa preza e incentiva a livre concorrência e o melhor atendimento no serviço aéreo brasileiro e acredita que o processo de seleção de fornecedores deve ser feito com critérios rigorosos para garantir os padrões de segurança e qualidade que o mercado exige”, afirmou a Air bp em nota.

Correção: ao contrário do informado anteriormente, o novo ponto de suprimento da Air bp em Paulínia ainda não está operacional. Deve ficar pronto até o fim do ano.