Os investimentos em tecnologias para a transição energética atingiram a máxima histórica de US$ 1,3 trilhão em 2022, mas o cenário para limitar o aumento da temperatura da Terra em 1,5ºC exige aporte mais de quatro vezes superior.
Nesse cenário, estima-se um acumulado de US$ 150 trilhões até 2050, o que significa em média US$ 5 trilhões ao ano, segundo a Agência Internacional para Energias Renováveis (Irena) [1].
Além do volume investido aquém do necessário para a economia carbono neutra, o desafio adicional é a diversificação socioespacial dos resultados proporcionados pelo capital empregado, pois 85% dos investimentos em energias renováveis beneficiaram menos da metade da população mundial.
Logo, a inconsistência entre os compromissos climáticos e a abrangência de seus resultados é diagnosticada em reflexo às desigualdades socioeconômicas e à preservação do paradigma energético baseado em recursos fósseis, que precisaria ser corrigida em termos de diretrizes políticas e prioridades de investimentos.
Matriz energética para alcançar o net-zero
O net-zero projetado pela Irena estima uma participação de recursos renováveis em 77% da matriz energética global, tornando a eletricidade o principal vetor dessa energia para mais de 50% do consumo final até 2050.
Para isso, os investimentos em geração renovável deveriam crescer de atuais US$ 486 milhões para quase US$ 1,4 trilhão ao ano, e, para infraestrutura de recarga e adoção de veículos elétricos, estima-se US$ 364 bilhões ao ano ante os US$ 30 bilhões despendidos atualmente.
No mesmo cenário, 94% do hidrogênio seria produzido a partir de fontes renováveis, alcançando capacidade de eletrólise de 5.722 GW para produzir 523 milhões de toneladas/ano mediante investimento anual de US$ 170 bilhões (incluindo eletrolisadores, infraestrutura, abastecimento e armazenamento) [2].
No entanto, a “transformação profunda e sistêmica” exigida para os próximos trinta anos perpassa corrigir determinadas barreiras para desbloquear a diversificação dos investimentos:
- em maior número de países, pois cerca de 80% estão centrados em China, Europa e América do Norte;
- para mais tecnologias, atualmente concentrados em energias solar fotovoltaica e eólica; e
- por agentes públicos e privados, com aportes mais equilibrados via mecanismos que minimizem e compartilhem riscos de se investir em soluções com baixa prontidão tecnológica e em regiões com menor desenvolvimento e carências de infraestrutura básica de energia.
Apesar de as diretrizes para atingir a neutralidade de emissões exortem um alinhamento dos compromissos globais, as disparidades socioeconômicas entre os países requerem soluções muitas vezes customizadas e apropriadas a realidades específicas.
Isso quer dizer que a proximidade com o cenário net-zero da Irena supracitado, ou outros cenários desenhados por instituições de referência no setor, pode variar entre países e regiões subnacionais.
Brasil precisa vencer o trauma de políticas públicas malsucedidas
No Brasil, embora reconhecidamente uma potência energética em abundância de fontes renováveis e matrizes predominantemente limpas, as inconsistências também precisariam ser corrigidas para destravar investimentos, mobilizar novas tecnologias e transmitir os incentivos adequados, uma vez que os principais parceiros comerciais do país estão se preparando e podem impactar a competitividade nacional.
Nos EUA, o Inflation Reduction Act (IRA) incentiva projetos e tecnologias de energia limpa implementados e produzidos no território estadunidense com créditos tributários que podem, por exemplo, reduzir o custo da energia solar em 40%, da tecnologia CCUS em 94% e nivelar o custo do hidrogênio verde em cerca de 50%.
Com um orçamento estimado em US$ 369 bilhões até o final da década, o IRA mobilizou em um ano – agosto de 2022 a julho de 2023 – US$ 278 bilhões em novos investimentos e pouco mais de 170 mil empregos em 272 projetos nas áreas de energia solar e eólica, veículos elétricos, hidrogênio, baterias, redes e outras tecnologias limpas [3].
Na União Europeia (UE), o Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM) estabelece mecanismo aduaneiro de taxação do carbono, exigindo na fase transitória que os importadores relatem as emissões incorporadas em seus produtos, em vigor desde outubro de 2023, e adquiram certificados CBAM, a partir de 2026, para igualar o preço do carbono de importações ao preço interno sujeito ao Sistema de Comercialização de Emissões da UE [4].
O objetivo é prevenir o vazamento de carbono daquelas indústrias (sobretudo aço e ferro, alumínio, eletricidade, fertilizantes e cimento) que, porventura, decidam realocar sua cadeia produtiva para regiões onde a regulação climática seja menos rigorosa.
Na China, cuja liderança em tecnologia limpa é indiscutível quando considerada a cadeia produtiva de painéis solares e componentes da indústria eólica, novas políticas para compensação de carbono e certificados de energia renovável sinalizam uma tentativa de resposta coordenada aos impactos esperados do CBAM [5], mas também adequação da economia às metas de redução de emissão e intensidade de carbono à luz do planejamento para o 15º Plano Quinquenal (2026-2030) e da expansão do mercado de carbono no país [6].
Por sua vez, o Brasil precisa vencer o trauma de políticas publicas malsucedidas no passado e vislumbrar um futuro verde, renovável, consistente e bem-sucedido.
A partir de novas tecnologias, novos entendimentos e novas cabeças diversas, o país já é capaz de pensar em políticas publicas que suportem o ideal de descarbonização nacional.
Dessa forma, o país tem se apoiado na expansão de políticas bem estabelecidas no país, como os mandatos de mistura de biocombustíveis nos combustíveis fósseis equivalentes previsto no “Combustível do Futuro”, mas também em soluções inovadoras, visando garantir novos mecanismos para o financiamento da transição energética e a expansão de tecnologias de baixo carbono para além daquelas tradicionalmente adotadas no país.
O “Novo PAC”, por exemplo, reuniu investimentos públicos e privados de R$ 565,4 bilhões (sendo 74% previstos até 2026) em ações relacionadas ao eixo de segurança e transição energética [7], embora os investimentos destinados efetivamente a tecnologias de baixo carbono se limitem a R$ 75,7 bilhões em geração de energia [8], R$ 1,8 bilhão em eficiência energética e R$ 5,1 bilhões em combustíveis de baixo carbono [9], haja vista 64% do total dos investimentos se destinarem ao setor de óleo e gás.
Dessa forma, evidencia-se a prioridade ainda elencada ao setor O&G e o protagonismo de seus players em capacidade de investimento relativamente à aceleração da economia de baixo carbono.
A “Nova Indústria Brasil”, por sua vez, prevê R$ 300 bilhões até 2026, gerenciados pelo BNDES, Finep e Embrapii para financiar ações da neoindustrialização mediante instrumentos do lado da oferta (empréstimos, subvenções, créditos tributários, ações regulatórias e de propriedade intelectual) e da demanda (compras públicas, requisitos de conteúdo local, encomendas tecnológicas e margem de preferência) para cumprir missões, entre outras, de “Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para gerações futuras”.
Nesta missão, o hidrogênio de baixo carbono e suas tecnologias para fabricação de equipamentos, produção, armazenamento, transporte e uso é uma prioridade de crédito à inovação, que prevê R$ 700 milhões por meio de chamadas públicas em fluxo contínuo a empresas de todos os portes, isoladamente ou em parceria com startups e em colaboração com institutos de ciência e tecnologia [10].
Essa política tem o ponto forte de reconhecer e propor mudanças à condição de país agrário e exportador de commodities, mas ainda estão indefinidas metas específicas para cada setor – a exemplo do hidrogênio que se restringe ao âmbito da inovação – e como se diferenciará de políticas industriais lançadas em décadas anteriores sem um diagnóstico preciso dos resultados por elas proporcionados.
O condicionante a medidas ainda em desenvolvimento no país, como o mercado de carbono regulado e a taxonomia verde previstos no Plano de Transformação Ecológica gestado pelo Ministério da Fazenda, torna a Nova Indústria Brasil abrangente.
O papel do Fundo Verde
Outra iniciativa, a partir do Congresso Nacional, também se destaca pelo Projeto de Lei Nº 5.174/2023, que institui o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten).
Entre seus objetivos, fomentar o financiamento de projetos de desenvolvimento sustentável relacionados à infraestrutura, pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica nos setores de: combustíveis renováveis (etanol, bioquerosene de aviação, biodiesel, biometano, hidrogênio de baixo carbono, bioenergia com captura de carbono); geração e transmissão de energia (solar, eólica, biomassa e outras fontes renováveis) e capacitação técnica, pesquisa e desenvolvimento de soluções de energia renovável; e, substituição de matrizes energéticas poluentes por energia renovável [11].
Os instrumentos do Paten são o Fundo Verde, administrado pelo BNDES e formado pela integralização de precatórios e créditos tributários que pessoas jurídicas possuem perante a União, visando facilitar o acesso a financiamento e reduzir o risco das instituições financeiras; e, transação tributária condicionada ao investimento em desenvolvimento sustentável, sendo autorizadas a concessão de descontos a multas, juros e encargos legais e a permissão de que o valor da parcela seja calculado com base em percentual da receita bruta do projeto implementado.
Diante da corrida internacional pelo domínio de tecnologias de baixo carbono e aporte destinado por economias desenvolvidas, encontrar soluções à realidade brasileira se impõe como condição sine qua non.
Ao permitir o uso do estoque de créditos que se encontram disponíveis, mas paralisados por questões jurídicas e por ineficiência do sistema tributário, o Paten busca se interpor entre as vantagens em recursos naturais do país e seus desafios em financiamento.
Ressalta-se que, embora o BNDES seja instituição líder em financiamento de renováveis no mundo segundo a BloomberNEF, o Brasil enfrenta uma lacuna de R$ 250 bilhões em investimentos ao ano.
A multiplicidade de iniciativas na esfera executiva e legislativa revelam o profundo apelo da transição energética e desenvolvimento sustentável na formulação de políticas públicas no Brasil.
Ao mesmo tempo, refletem o amplo engajamento da sociedade em busca por soluções a novos negócios de baixo carbono e a transversalidade do tema em diferentes setores econômicos, como industrial e transportes.
De certa forma, respondem também ao avanço de políticas desenvolvidas por outros países e os cenários projetados até 2050.
Porém, o caminho brasileiro para a neutralidade climática requer coordenação integrada para prevenir duplicidade de agendas e medidas isoladas, bem como o monitoramento e avaliação contínua para correção eventual de rotas. O risco é proliferar intenções sem o recurso econômico correspondente, portanto, a importância de diretrizes políticas alinhadas à mobilização dos investimentos.
Fernanda Delgado é Diretora Executiva da ABIHV (Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde), professora na FGV e cocriadora dos projetos “Sim, Elas Existem!” e “EmpodereC”.
Referências
[1] IRENA. World Energy Transitions Outlook 2023: 1.5°C Pathway. June, 2023. Disponível em: <https://www.irena.org/Publications/2023/Jun/World-Energy-Transitions-Outlook-2023>.
[2] Ibid
[3] WHITE HOUSE, 2023. One Year In: President Biden’s Inflation Reduction Act Driving Historic Climate Action and Investing in America to Create Good Paying Jobs and Reduce Costs. White House. Publicado em: 16 ago. 2023. Disponível em:<https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/08/16/fact-sheet-one-year-in-president-bidens-inflation-reduction-act-is-driving-historic-climate-action-and-investing-in-america-to-create-good-paying-jobs-and-reduce-costs>.
[4] WAY CARBON. O que é o CBAM e como afetará empresas brasileiras? Publicado em 21 de junho de 2022. Disponível em: <https://blog.waycarbon.com/2022/06/o-que-e-o-cbam-e-como-afetara-empresas-brasileiras>.
[5] A China é a quarta principal origem do aço importado pela União Europeia. Ver: Wei Li; Xing Liu; Can Lu. Analysis of China’s steel response ways to EU CBAM policy based on embodied carbon intensity prediction. Energy. Volume 282, 1 November 2023. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0360544223022065>.
[6] MEIDAN, Michal; HOVE, Anders; QIN, Yan. China’s policy pendulum shifts back toward environmental protection, but will bureaucracy get in the way? OIES. February, 2024. Disponível em: <https://www.oxfordenergy.org/wpcms/wp-content/uploads/2024/02/Chinas-policy-pendulum-shifts-back-toward-environmental-protection.pdf>.
[7] BRASIL. Casa Civil. Novo PAC. Disponível em: <https://www.gov.br/casacivil/pt-br/novopac/transicao-e-seguranca-energetica>.
[8] Inclui R$ 6,7 bilhões para geração térmica a gás natural.
[9] Inclui biorrefino 100% renovável, coprocessamento fóssil e renovável, etanol de segunda geração, captura direta de gás carbônico e biometano.
[10] BRASIL. MDIC. Nova Indústria Brasil. Disponível em: <https://www.gov.br/mdic/pt-br/composicao/se/cndi/plano-de-acao/nova-industria-brasil-plano-de-acao.pdf>.
[11] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL n. 5174/2023. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2350333>.
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