Durante o domínio britânico na Índia, entre 1858 e 1947, o governo decidiu enfrentar uma epidemia de cobras pagando uma recompensa a cada serpente morta. A intenção era clara: reduzir a população de cobras.
Mas o que aconteceu foi o oposto. Algumas pessoas passaram a criar cobras em casa apenas para matá-las e receber o prêmio. Quando o governo percebeu o problema e suspendeu a política, as cobras criadas foram soltas — agravando ainda mais a infestação.
Esse episódio, hoje conhecido como “efeito cobra”, é um bom ponto de partida para discutir o que está acontecendo com as bandeiras tarifárias no Brasil.
Criadas para oferecer um sinal econômico ao consumidor em momentos de escassez de energia, as bandeiras passaram a cumprir uma função de antecipar receita para as distribuidoras, mesmo em um cenário de sobra de energia.
O resultado é que pagamos mais pela conta de luz justamente quando estamos desperdiçando eletricidade limpa e abundante.
Neste mês de junho, a Aneel decidiu acionar a bandeira vermelha patamar 1, o que significa um custo adicional de R$ 4,46 para cada 100 kWh consumidos. A justificativa foi o aumento do Preço de Liquidação de Diferenças (PLD) que ultrapassou o gatilho para acionar essa cobrança.
Mas o que está por trás da elevação do PLD? A resposta está longe de ser um risco de desabastecimento.
O que houve foi uma combinação de fatores: redução da afluência nas regiões Sudeste/Centro-Oeste e, sobretudo, a priorização da segurança de suprimento, que vem determinando a manutenção de térmicas ligadas, mesmo com sobra de energia renovável.
Além disso, há gargalos de transmissão que impedem o escoamento da energia limpa gerada no Nordeste.
Não colabora também o fato de que o Operador Nacional do Sistema (ONS) passou a atuar de forma mais conservadora há meses, limitando o escoamento de geração renovável do Nordeste para a demais regiões do país.
Isso nos leva à verdadeira distorção: mesmo com um sistema fisicamente abastecido e um volume recorde de geração solar e eólica disponível (a energia mais barata e limpa do sistema), estamos acionando usinas térmicas e elevando artificialmente o custo de operação.
Temos energia de sobra, mas a estrutura para transmiti-la não acompanha o ritmo da transição energética.
Enquanto isso, no mundo real, mais de 14,6 TWh de energia renovável foram cortados em 2024 no Brasil, um custo ao sistema de R$ 1,6 bilhões. Apenas no último mês de maio, o corte total foi de 2,5 TWh, o que equivale a R$ 205 milhões de custo adicional.
O dado, embora técnico, é simples de traduzir: é como se 32 milhões de famílias tivessem ficado um mês inteiro sem consumir energia, por desperdício de energia.
Chamamos isso de curtailment, ou corte de geração. Na prática, desligamos turbinas eólicas e painéis solares enquanto sinalizamos ao consumidor que ele precisa economizar porque “a energia está cara”.
É difícil imaginar uma contradição mais evidente. A bandeira tarifária deveria servir para corrigir desequilíbrios momentâneos entre oferta e demanda. Mas hoje ela mascara um desequilíbrio estrutural: o Brasil está atrasado na ampliação da sua rede de transmissão e, com isso, estamos desperdiçando os ganhos da revolução renovável.
O que falta não é energia. Falta fio e sinal econômico. E, enquanto não resolvermos esse gargalo, o consumidor vai continuar pagando caro para sustentar um sistema que não consegue aproveitar o que tem de melhor: sol, vento e uma matriz limpa como poucas no mundo.
A resposta precisa vir com planejamento, mas também com ações de curto prazo para aumentar a capacidade de exportação do Nordeste para o Sudeste — aliviando os cortes de geração e protegendo o consumidor, bem como a sinalização para que as residências e o pequeno comércio aproveitem os horários de energia mais barata.
O Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) já apontou caminhos para aumentar a capacidade de transmissão que podem ser implementados já em julho, aproveitando a “safra dos ventos” no Brasil.
Porém, os passos estruturais precisam ser dados, e de forma célere. Sem isso, a bandeira vermelha em meio ao desperdício de energia limpa é só o retrato de um sistema mal calibrado — que gera inflação, não induz eficiência na oferta e no consumo, punindo quem deveria ser protegido.
Assim como no episódio das cobras, estamos lidando com uma política pública que, ao tentar corrigir um problema, intensifica outro. Criamos um sinal de escassez em meio à abundância, incentivamos a contenção do consumo enquanto jogamos fora a energia mais limpa e barata que temos.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Bernardo Bezerra é diretor de Regulação e Inovação da Serena.