Nos dias 18, 19 e 20 de maio, ocorreu o Congresso Mercado Global de Carbono — Descarbonização & Investimentos Verdes no Jardim Botânico da cidade do Rio de Janeiro, realizado pelo Banco do Brasil (BB) e pela Petrobras, com apoio do Banco Central do Brasil e Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Na fala de abertura, foi destacado o papel do Brasil como líder em agro verde e como potencial líder na oferta de créditos de carbono, o que culminou no anúncio da criação de um “mercado regulado nacional de carbono”. A promessa era de que o decreto seria lançado no próprio dia 18, porém só foi publicado no Diário Oficial no dia seguinte (19). Fontes informam que o atraso se deveu à necessidade de ajustes técnicos finais por parte da Casa Civil.
O maior descontentamento, no entanto, não foi devido ao atraso e à ansiedade gerada sobre o mercado: a (nova) proposta simplesmente não considerou a participação do mercado nem da sociedade civil e desconsiderou discussões e debates de mais de um ano do Projeto de Lei 528/2021, do deputado Marcelo Ramos (PL/AM), que tramitava em regime de urgência na Câmara dos Deputados e se propõe a regulamentar o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE) para a compra e venda de créditos de carbono no país.
Regulação do mercado de descarbonização não veio
Segundo o ministro do MMA, Joaquim Leite, o PL 528/2021 não é descartado como um segundo momento a partir do lançamento do mercado de carbono nacional. Para ele, a maturidade do mercado “virá com a aprovação do PL amplamente debatido com a sociedade no Congresso Nacional e com o apoio do governo federal”.
O anúncio do ministro frustrou quem esperava que a regulação do mercado de carbono no país viesse com a aprovação do PL 528, especialmente pois havia o temor de que a publicação de duas regulamentações versando sobre o mesmo tema pudesse causar insegurança jurídica, com futuras alterações do texto, que desfigurasse o objetivo de um mercado regulado.
Ainda segundo Leite, apesar de não oferecer detalhes sobre o desenho geral do mercado, o decreto que o instituiria trará elementos inovadores e modernos, tais como o “conceito de crédito de metano”, a possibilidade de “registro de pegada de carbono de processos e atividades”, além do uso de um “sistema único de registro” — que permitirá “registrar o carbono fixado no solo por processos produtivos” do agronegócio.
Vale destacar que existem diversas metodologias internacionais já consolidadas voltadas a este tipo de crédito no mercado voluntário.
Ressalta-se ainda que tampouco foi mencionado como se daria o desenho para redução de emissões de setores regulados, restando aos interessados algumas informações disponíveis na minuta do decreto, que circulou nas últimas semanas.
Nela se destacava a proposta de um teto de emissões para setores mais carbono-intensivos a ser definido via acordos setoriais, além do estabelecimento de um Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare).
De acordo com a minuta, nove setores seriam contemplados pelo mercado:
- geração e distribuição de energia elétrica;
- transporte público urbano e sistemas de transportes interestaduais de cargas e de passageiros;
- indústria de transformação e de bens de consumo duráveis;
- químicas finas e de base;
- papel e celulose;
- mineração;
- construção civil;
- serviços de saúde;
- e agropecuária.
Destaca-se que nela não há menção ao setor florestal.
Créditos de metano
A minuta também previa a criação dos “créditos de metano”, que seria um ativo representativo de redução ou remoção de uma tonelada de metano “que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado”. Vale lembrar que inexistem experiências relacionadas a este tipo de crédito em outros países.
Também propôs a criação de uma Unidade de Estoque de Carbono (UEC) como um ativo representativo de “todos os meios de depósito de carbono que não em GEE presentes na atmosfera”. Ambas as propostas parecem dialogar com o setor agro.
Em suma, a tônica da plenária de abertura do evento se concentrou no destaque dos instrumentos econômicos (ou de mercado), porém não se mencionou o papel dos instrumentos de comando e controle (regulatórios, jurídicos e legais), dentre os quais se destaca a necessidade de uma maior fiscalização e controle do desmatamento no país, grande responsável pela emissão de gases de efeito estufa (GEE).
Curiosamente, no painel seguinte, o presidente do Banco Central, Roberto Campos, recebeu críticas dos investidores que ressaltaram a necessidade de o Brasil endereçar o desmatamento sob o risco de afastar investimentos.
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Inconsistências do governo
Outras inconsistências puderam ser observadas na abertura. Ainda na fala do ministro do MMA, “primeiro, criamos o mercado global. Agora, vamos criar o mercado regulado nacional, para poder exportar créditos […]”. Ocorre, entretanto, que nenhum mercado global foi criado, além de sequer ser uma prática comum a exportação/importação de créditos em mercados regulados.
Na prática, parece haver uma confusão teórica-conceitual entre o que é mercado voluntário e mercado compulsório. Ainda, ele informou que seria possível gerar receitas de até R$ 100 bilhões com os créditos de carbono até 2030, porém não foram informados quem seriam os potenciais compradores.
Brasil vai “tributar poluição”, diz Guedes
E para dificultar ainda mais a compreensão do mercado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda informou que o país iria “tributar a poluição”, sugerindo a implementação não apenas de um, mas de dois diferentes tipos de instrumentos de precificação de carbono: ou seja, um imposto sobre o carbono e um mercado de carbono — destaca-se que o termo “imposto” não apareceu em momento algum na minuta do decreto.
Por fim, foi lançado o Decreto nº 11.075, de 19 de maio de 2022, que estabelece os procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas; institui o Sinare; e altera o Decreto nº 11.003, de 21 de março de 2022.
Decreto foca na exportação de créditos de carbono
Em resumo, o decreto tem como foco a exportação de créditos, especialmente para países e empresas que possuem compromissos carbono neutro, e trouxe como proposta a criação de créditos de carbono, créditos de metano, UEC e Sinare.
Nele é prevista a possibilidade adicional de registro de pegada de carbono dos produtos, processos e atividades; carbono de vegetação nativa e o carbono no solo (contemplando os produtores rurais e os mais de 280 milhões de hectares de floresta nativa protegidos); além do carbono azul (presente nas áreas marinha, costeira e fluvial).
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Apesar do avanço na classificação dos créditos como ativos financeiros, a partir de um registro único de projetos e créditos de carbono nacionais — que segue as transações e aposentadoria dos créditos –, inúmeras dúvidas e incertezas se fazem presentes.
Mas não define setores que deverão ter metas de descarbonização
Diferentemente da minuta, o Decreto excluiu a definição dos setores que deverão ter metas de redução de emissões de GEE, bem como estabeleceu que caberá ao governo federal propor os Planos de Mitigação das Mudanças Climáticas aos setores responsáveis pelos maiores volumes de emissões, e aprová-los em um comitê interministerial.
Muitas incertezas vigoram relacionadas à sua (possível) natureza facultativa, visto que não há referências à obrigatoriedade, à pouca discussão sobre mecanismos de monitoramento, reporte e verificação (MRV) e à não clareza quanto aos prazos, que podem divergir por setor.
Para deixar a narrativa ainda mais complexa e confusa, no mesmo dia (19), a deputada Carla Zambelli (PSL/SP) protocolou novo parecer ao PL 2.148/2015, que estabelece o mercado brasileiro de redução de emissões, sendo pela aprovação, com substitutivo, do PL e apensados (PL 10.073/2018, PL 5.710/2019, PL 290/2020 e PL 528/2021).
O novo substitutivo (ver na íntegra em .pdf) propõe o Sistema Nacional Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), de caráter mandatório, composto por um registro nacional de emissões de GEE, bem como por um Registro Nacional Integrado de Compensações de Emissões de GEE (RNC-GEE). O SBCE seria criado com base em um Plano Nacional de Alocação, definido por uma autoridade competente, a ser aprovado em Colegiado Participativo.
Ou seja, diversas incertezas existem com relação aos encaminhamentos e à própria eficiência deste “mercado nacional de carbono”, gerando uma verdadeira insegurança jurídica e regulatória aos atores envolvidos. Em um cenário de baixa previsibilidade e alta desconfiança, nasce, na prática, as bases para o estabelecimento de um sistema de registro, fundamental ao desenvolvimento de um mercado, e não propriamente um mercado nacional de carbono.
Seguimos, desde 2009, a partir do lançamento da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), aguardando a criação e o funcionamento do tão esperado mercado de carbono no Brasil.
Luan Santos é pós-doutor em Economia do Clima e do Meio Ambiente (Universität Graz, Áustria). Professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (Facc/UFRJ) e do Programa de Engenharia de Produção (Coppe/UFRJ).
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