O cancelamento do Leilão Reserva de Capacidade de 2025 previsto para junho é mais um sinal do descasamento entre as condições do setor elétrico e o marco regulatório de comercialização de energia em vigor.
Com mais de duas décadas, esse modelo não teve como absorver a revolução observada no setor nos últimos anos, com a expansão das fontes eólica e solar na matriz, a ampliação da abertura do mercado e o crescimento dos encargos pagos pelos consumidores.
O resultado é que o setor tem funcionado por meio de ajustes voltados ao atendimento de necessidades específicas — como seria o caso desse leilão, para solucionar o problema da falta de potência —, que podem acentuar outros problemas e ampliar ineficiências.
Isso pressiona tanto os consumidores como as condições ambientais do setor, num ciclo que, no limite, ameaça até mesmo a possibilidade de o Brasil atuar entre os protagonistas da transição energética global.
Afinal, combinada a outros predicados do país, como a oferta de matérias-primas, infraestrutura e um sistema financeiro robusto, a energia renovável pode atrair novos investimentos produtivos como parte do processo de descarbonização das cadeias produtivas globais, num movimento favorável ao nosso desenvolvimento socioeconômico e à redução das emissões.
Mas isso depende prioritariamente não só da manutenção da renovabilidade da matriz, como que a energia seja disponibilizada a custo competitivo.
No caso do leilão em questão, a principal preocupação do ponto de vista da transição se devia à perspectiva de participação massiva de usinas termelétricas a gás natural. Afinal, o país dispõe de opções mais modernas, flexíveis e eficientes para atender ao requisito de potência com custos e impactos ambientais inferiores.
A exigência de flexibilidade do setor elétrico se deve principalmente ao aumento significativo da participação de fontes variáveis na matriz nos últimos anos, num movimento muito relevante no contexto da transição. Portanto, chega a ser absurdo se o país tiver de ampliar seu parque térmico por investir em fontes limpas de energia.
Evidentemente que a possibilidade de se investir em novas térmicas não pode ser analisada como uma escolha binária entre ter ou não mais usinas. Mas, como mostra a experiência internacional, sistemas elétricos podem ser mais resilientes sem depender exclusivamente desse tipo de planta.
Além disso, as térmicas contratadas no modelo atual têm longas curvas de rampa para despacho efetivo de curta duração. Isso reduz sua viabilidade técnica, tornando seus custos e impactos ambientais ainda mais elevados e não garantindo a melhor eficiência para o sistema.
A resposta da demanda, por outro lado, pode ser acionada com grande agilidade e a custos mais competitivos. Afinal, depende apenas do desligamento de cargas conforme orientação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
O processo é feito por meio da contratação do serviço, com incentivos financeiros para que os consumidores reduzam ou desloquem o uso de energia para momentos de menor demanda do sistema. Essa estratégia já é aplicada com sucesso em países como Austrália e Nova Zelândia, bem como no mercado PJM, dos Estados Unidos.
A gestão mais inteligente dos reservatórios hidrelétricos, por sua vez, é um luxo do qual poucos países podem se beneficiar. Ao invés de despachar essas usinas com base na possibilidade de gerarem eletricidade a custo relativamente baixo, a ideia é aproveitar mais a sua potência e colocá-las para fazer o chamado seguimento de carga.
Com isso, o operador poderia inclusive ampliar o uso da energia da energia eólica e solar que hoje estão tendo de ser cortadas.
Por fim, merece destaque o fato de que o governo está preparando o primeiro leilão de contratação de baterias, essa também uma alternativa menos poluente para aumentar a flexibilidade do sistema.
Embora ainda seja bastante elevado, o custo desses sistemas de armazenamento está em queda e sua aplicação pode reduzir a intermitência das fontes variáveis, além de prestar serviços para melhorar o atendimento em regiões conhecidas como pontas de linha, onde não há redundâncias para o fornecimento.
De qualquer forma, não nos iludamos: essas são alternativas relevantes que, esperamos, componham as novas regras do leilão ora cancelado.
Não eximem, no entanto, o setor de avançar num marco regulatório mais robusto e que enderece de maneira efetiva o conjunto de problemas que vem se acumulando. Portanto, além de ajudar a resolver o problema atual de falta de potência, tais opções justamente têm de ser consideradas no mosaico setorial a guiar a definição das regras.
Rosana Santos é diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética.