Opinião

Judicialização do constrained-off: embate entre geradores e Aneel chega ao STJ

A construção de uma solução estrutural capaz de resolver o cenário transcende a atuação da agência e envolve aspectos relacionados à operação e ao planejamento do setor

Bruna de Barros é advogada na BMA Advogados (Foto Divulgação)
Bruna de Barros é advogada na BMA Advogados (Foto Divulgação)

O setor elétrico brasileiro enfrenta um momento de intensa judicialização, impulsionado por disputas regulatórias e contratuais que impactam, tanto os agentes de geração, quanto os consumidores. Entre os temas mais relevantes, merece atenção a discussão sobre a remuneração de usinas em situação de constrained-off, um mecanismo que tem gerado decisões judiciais conflitantes e traz impactos significativos para o setor.

O constrained-off ou curtailment, como também é chamado, ocorre quando uma usina geradora é impedida de operar, ou tem sua operação reduzida, devido a restrições sistêmicas impostas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), independentemente de sua disponibilidade técnica ou interesse comercial. Em outras palavras, ocorre quando, apesar de gerar energia elétrica, o gerador fica impedido de injetá-la na rede.

Essas restrições podem decorrer de limitações na rede de transmissão, risco de sobrecarga no sistema elétrico ou necessidade de priorização de outras fontes de geração por razões operacionais. Por se tratar de uma imposição, a usina geradora teria o direito à compensação pelos cortes de geração, nos termos da Lei nº 10.848/2004 e do Decreto nº 5.163/2004. 

Tal direito à compensação para as usinas eólicas e fotovoltaicas foi especificamente regulado pela Resolução Normativa Aneel nº 1.030/2022, posteriormente alterada pela Resolução Normativa nº 1.073/2023.

É possível identificar uma intensificação na judicialização do tema regulado pela Resolução Normativa nº 1.030/2022, que criou três categorias de restrição de operação para usinas eólicas e fotovoltaicas: (i) indisponibilidade externa; (ii) confiabilidade elétrica; e (iii) razão energética.

A Resolução restringiu a compensação apenas para a primeira categoria de restrição e estipulou uma franquia de horas, ou seja, um limite mínimo de horas anuais a partir do qual é possível pleitear a compensação – 78 horas no caso de usinas eólicas (art. 16, § 2º) e 30 horas e 30 minutos no caso de usinas solares (art. 20-D, § 2º). 

Os geradores passaram a enxergar essa nova regulação como um entrave ao seu funcionamento adequado, uma vez que, em última medida, a quase totalidade das consequências da restrição, imposta em função de fatores externos, acaba recaindo  sobre o gerador.

Tal descontentamento se agravou a partir da perturbação do SIN, em 15 de agosto de 2023, quando os cortes de geração se intensificaram ainda mais.

O caráter restritivo das diretrizes normativas, associado à intensificação nos cortes de geração, tem originado questionamentos judiciais por parte dos agentes do setor, que argumentam pela ampliação das hipóteses que ensejariam o direito à compensação.

Diante desse cenário, o tema foi levado ao Judiciário por meio da ação ordinária nº 1098384-92.2023.4.01.3400, ajuizada, em 6 de outubro de 2023, por associações de geradores de energia eólica e solar, contra a Aneel, pleiteando a compensação integral dos geradores associados, independentemente da classificação da restrição.

As associações também pleitearam, em sede liminar, que as restrições impostas pela Aneel às usinas no que toca à compensação por constrained-off fossem suspensas desde logo.

Apesar de ter sido negada em primeiro grau, o TRF-1 determinou, ainda em sede liminar, a compensação integral aos geradores associados, nos casos de restrição de operação, sem limitação à categoria de indisponibilidade externa e sem a aplicação da franquia de horas.  

A decisão colegiada representa um marco no debate sobre a compensação por constrained-off, pois reconhece a plausibilidade da tese de que a Resolução Normativa nº 1.030/2022 extrapolou os limites do poder regulamentar da Aneel.

Esse entendimento sinaliza um possível reconhecimento da incompatibilidade entre a norma infralegal e o arcabouço jurídico vigente, bem como da necessidade de assegurar maior previsibilidade às regras de remuneração dos geradores.

Diante dos iminentes efeitos da decisão liminar, a Aneel apresentou Suspensão de Liminar e Sentença perante o STJ, em que pleiteou a suspensão dos efeitos da decisão proferida pelo TRF-1, em razão dos riscos alegados de grave lesão à ordem e à economia pública.

O pedido não se limitou aos processos movidos pelas associações, mas alcançou outros litígios semelhantes, reforçando a estratégia da Aneel de evitar a multiplicação de decisões judiciais que poderiam comprometer a previsibilidade regulatória do setor elétrico.

O ministro relator, Humberto Martins, acolheu o pedido da Aneel e determinou a suspensão dos efeitos das decisões proferidas pelo TRF-1 que garantiam a compensação integral às usinas, independentemente da categoria da restrição de operação e da franquia de horas.

O ministro entendeu que a intervenção do Judiciário em regras técnicas poderia comprometer a estabilidade do setor e resultar na transferência de custos bilionários para os consumidores, sem uma avaliação mais aprofundada da necessidade desse repasse.

Com isso, até que o mérito desses processos sejam julgados ou eventuais recursos pendentes sejam analisados, as regras da Resolução Normativa nº 1.030/2022 permanecem em vigor, restringindo a compensação apenas às situações de indisponibilidade externa e mantendo a exigência da franquia de horas.

A depender do desfecho da questão jurídica que está posta, o Judiciário poderá consolidar o direito à compensação para todas as categorias de restrições, garantindo maior previsibilidade para os agentes geradores e provocando efeitos para o setor como um todo.

Por outro lado, caso prevaleça a posição da Aneel, sua autonomia regulatória será reforçada, mas poderá ter como resultado o desestímulo a novos investimentos em geração de energia, o que pode trazer desafios para o planejamento setorial.

Ainda que a autonomia da Aneel seja reforçada, a construção de uma solução estrutural capaz de resolver o cenário que envolve o constrained-off transcende a atuação da agência e envolve aspectos relacionados à operação e ao planejamento do setor. 

Os impactos da penetração de usinas não despachadas centralizadamente pelo ONS, incluindo o crescimento de micro e minigeração distribuída (MMGD), devem ser considerados.

Diante desse contexto, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), em 6 de março de 2025, instituiu um Grupo de Trabalho, que contará com representantes do MME, Aneel, ONS, EPE e CCEE, com o objetivo de resolver os cortes de geração que têm impactado significativamente as usinas eólicas e fotovoltaicas.

Este artigo expressa exclusivamente a posição das autoras e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculadas.


Bruna de Barros Correia é advogada sênior da área de Energia do BMA Advogados

Isabella Ardente de Almeida da Rocha é advogada da área de Energia do BMA Advogados

Livia Caldas Brito é advogada da área de Solução de Conflitos do BMA Advogados

Giovanna Smidt Frischknecht é advogada da área de Societário do BMA Advogados

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