Energia

Petrobras: desenvolvimento como desinvestimento

O plano de desinvestimentos representa uma transformação da indústria brasileira de petróleo e gás comparável à flexibilização do monopólio, ocorrida em 1997, escrevem Marcos Cintra e Lenine Moura

Petrobras: desenvolvimento como desinvestimento. Na imagem: Operação da Trident Energy na Bacia de Campos (Foto: Cortesia)
Operação da Trident Energy na Bacia de Campos (Foto: Cortesia)

A compra e venda de ativos e direitos de exploração e produção é prática usual no setor de infraestrutura, particularmente na indústria de petróleo e gás natural. É por meio da troca de portfólio que as companhias gerenciam sua alocação de capital e conservam ao longo do tempo características empresariais e operacionais, como porte e perfil.

Apelando à metáfora futebolística, as supermajors, companhias do tamanho da Petrobras, Shell, Exxon, Total, Eni e BP, jogam na Champions League. Fazem vultosas alocações de capital em projetos grandes e complexos de exploração e produção (E&P), capazes de remunerar volumes de investimento que, somados, podem ultrapassar US$ 800 bilhões em um único ano.

Após atingir o pico de sua produção, o volume de petróleo e gás extraídos desses campos gigantes vai reduzindo gradualmente a energia interna dos reservatórios, o que os faz declinar. Quando caem a determinado patamar, passam a ser considerados maduros. O campo de Marlim, na Bacia de Campos, é uma síntese dessa trajetória: no pico, em 1993, chegou a 600 mil barris/dia e hoje está na faixa de 100 mil/dia. Os campos de Frade, vendido pela Shell, e de Papa Terra, alienado pela Chevron, são outros exemplos.

É usualmente mais vantajoso às supermajors vender do que investir nesses campos, que são repassados a empresas de porte médio, especializadas em revitalizá-los. Investindo em sofisticadas técnicas de recuperação, que auxiliam os hidrocarbonetos a chegar à superfície, essas companhias jogam no Brasileirão, um campeonato importante, mas que não conta com estrelas como Messi, Haaland, Mbappé, Benzema ou Vinícius Júnior.

Essas ações elevam a produção desses campos por certo período; ela, porém, volta a cair. Nesse plano inclinado, são transferidos a companhias pequenas e ágeis, com estrutura de custos enxuta, que jogam numa categoria que pode ser definida como campeonatos regionais.

Desinvestimento destravou investimentos

A Petrobras, em sua primeira leva de transferência de ativos, entre 2012 e 2014, vendeu participação em 21 campos de petróleo e gás no exterior, arrecadando US$ 10,7 bilhões. O processo foi intensificado no período 2017-2022, com o Plano de Desinvestimentos, um nome ruim, que não transmite adequadamente o conceito positivo da troca de portfólio.

Com regras de governança da estatal e do Tribunal de Contas da União (TCU), a iniciativa inclui a oferta de ativos que:  i) não atingiram retorno projetado e oneram o caixa da companhia devido ao seu custo operacional (opex); ii) alcançaram estágio maduro, com expressiva depleção dos reservatórios e necessidade de investimentos adicionais (capex) para manter ou aumentar o patamar de produção por meio de técnicas de recuperação secundária e terciária, reduzindo a margem projetada e podendo levar à inviabilidade econômica; iii) estão fora das diretrizes estratégicas de alocação de capital da companhia, focadas na produção de grandes jazidas de óleo offshore.

Cobrimos por aqui:

No segmento E&P, foram 46 transações, com a transferência de 146 campos produtores e/ou blocos exploratórios, arrecadação de R$ 111 bilhões e exemplos exitosos, como o campo de Azulão, na Bacia do Amazonas, vendido à Eneva em 2018, por R$ 300 milhões. Embora descoberto em 1998, Azulão estava há 20 anos sem produzir. Por ser uma jazida de gás não-associado a petróleo, longe de centros de consumo e volumetria que não justificava a construção de gasoduto, o ativo era pequeno na carteira da Petrobras.

Azulão recebeu investimentos de R$ 1,9 bilhão e dois anos após a cessão já produzia até 1 milhão de m³ de gás/dia para abastecer uma termelétrica em Boa Vista (RR), com geração de 2.200 empregos diretos na implantação. O desinvestimento de Azulão impulsionou a Bacia do Amazonas e atraiu investimentos para a prospecção de áreas exploratórias e construção de um novo parque termelétrico de 885 MW, com produção diária de até 5 milhões de m³/dia e inversões de R$ 5,8 bilhões até 2026.

Em 2019, a PetroRecôncavo adquiriu da Petrobras, por US$ 294 milhões — podendo acrescentar US$ 61,5 milhões, a depender do preço do barril (cláusula de earn-out) –, o Polo Riacho da Forquilha. O conjunto de 34 campos terrestres maduros no Rio Grande do Norte, que chegou a produzir 10 mil barris/dia, tinha declinado para 3.700. Agora produz 8.913 barris/dia, ou seja, 140% a mais.

A melhoria da eficiência e o aumento da produção não ocorrem apenas em terra. A PetroRio, especializada no ambiente offshore, adquiriu os campos de Frade, da Chevron e da Petrobras, e de Tubarão Martelo, da Dommo Energia, e criou um polo cujas sinergias reduziram o custo de extração e aumentaram a produção em 60%. A companhia, que produz 45 mil barris/dia vai aumentar esse número em 70% com a compra de Albacora Leste, da Petrobras.

A Perenco comprou por US$ 400 milhões o Polo de Pargo e aumentou sua produção em 417%, de 2.350 barris/dia em 2019 para 9.800 em 2022. Com investimentos firmes de US$ 192 milhões — e US$ 170 milhões contingentes –, vai estender a vida útil desses ativos em 20 anos e fazê-los retomar o patamar de 20 mil barris/dia.

A Trident Energy, por sua vez, comprou da Petrobras os polos de Pampo e Enchova por US$ 418,6 milhões e gatilhos contratuais podem fazê-la pagar mais US$ 650 milhões. A produção, de cerca de 20 mil barris/dia, chegará a 55 mil através de um novo FPSO. A 3R, Origem, BW, Cobra e Seacrest são outros exemplos igualmente exitosos.

A passagem desses ativos da Petrobras para pequenas e médias empresas permitiu o aumento do investimento e o pleno aproveitamento dos recursos naturais do país. Houve melhoria no fator de recuperação dos reservatórios — cuja média brasileira é de 21%, contra 35% do mundo — e aumento na arrecadação de royalties e tributos e na geração de empregos.

Esse dinamismo das operadoras independentes, que afeta positivamente as economias regionais e a cadeia de fornecedores de bens de serviços, trará mais US$ 10 bilhões de investimentos até 2027, o que fará sua produção atingir em cinco anos o pico de 485 mil barris/dia, segundo a Wood Mackenzie. O total das reservas remanescentes desses campos alcançará 980 milhões de barris de petróleo equivalente (boe), um volume significativo.

Manutenção dos desinvestimentos

A continuidade das transferência de ativos também parece benéfica à Petrobras, pois: i) desonera a empresa dos custos de abandono desses campos; ii) libera sua sofisticada expertise técnica para ser utilizada em ativos maiores e mais rentáveis; iii) mantém a saúde financeira e reduz o custo da dívida; iv) gera recursos adicionais para projetos como o Pré-Sal e a Margem Equatorial, mais rentáveis e com elevado potencial.

Adicionalmente, ao promover um quadro de múltiplos agentes, de variados portes e perfis, o plano de desinvestimentos representa uma transformação da indústria brasileira de petróleo e gás comparável à flexibilização do monopólio, ocorrida em 1997.

Se parece recomendável ao país perseverar nessa trajetória de transferência de ativos, o cenário de transição energética, que traz incerteza sobre até quando o mundo consumirá fósseis, reforça a necessidade de acelerar a produção de suas reservas enquanto elas ainda têm valor.

É legítimo que o governo eleito faça alterações de curso e é do jogo que forças políticas operem para que suas crenças sejam acolhidas. Democracias saudáveis possuem mecanismos que estimulam o debate e evitam que o processo de mudança ocorra de maneira autoritária, impulsiva ou insensata.

Há espaço para o novo governo aperfeiçoar o processo, lhe atribuindo características que julgar relevantes, como arranjos de cooperação e parceria que democratizem as oportunidades e ampliem seus benefícios, assegurando que desinvestimento continue gerando desenvolvimento.

Marcos Cintra, executivo do setor de petróleo, gás e energia, é mestre em Políticas Públicas (IE-UFRJ) e doutor em Energia (IEE-USP). E-mail: [email protected]

Lenine Moura é graduado em Relações Internacionais pela UFRJ e atua no setor de petróleo, gás natural e energia desde 2014. E-mail: [email protected]

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.