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Penalidades, custo do transporte e preço do gás inibem o crescimento do mercado

Contratos criam uma verdadeira camisa de força, imposta pelos transportadores, que resultam em um gás natural mais caro, escreve Marcelo Menezes

Dois trabalhadores operam instalações em gasoduto (Foto: Divulgação Saudi Aramco)
Encargos e penalidades encarem as tarifas de transporte e distribuição de gás e inibem a migração para o mercado livre (Foto: Divulgação Saudi Aramco)

O mercado de gás natural no Brasil vem passando por grandes transformações, tendo como principais impulsionadores a Lei 14.134, de 08 de abril de 2021, a nova Lei do Gás, e o TCC – Termo de Compromisso de Cessação firmado pela Petrobras com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em 2019.

A partir desses marcos, começamos a ter novos ofertantes de gás natural, além da Petrobras, que ainda tem posição dominante, sendo responsável pela comercialização em torno de 78% do volume contratado pelas distribuidoras e consumidores livres (não termelétricos), atuando como o agente precificador do mercado.

Vemos que, especialmente no Nordeste, existe uma maior diversidade de ofertantes e uma maior competição, com a participação dos operadores de campos que foram desinvestidos pela Petrobras, sendo praticados, como consequência, menores valores da molécula (cerca de 17% em relação às demais regiões).

Os avanços são grandes para o pouco tempo do início desse processo de abertura do setor de gás natural.

Seguramente, as perspectivas de aumento da oferta de gás nos próximos anos e as medidas de desconcentração de mercado que estão sendo discutidas para promoção da concorrência.

São as diretrizes estratégicas do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), por meio da Resolução 03/2022, que deverão acelerar o processo de desenvolvimento do Novo Mercado de Gás Natural, de forma a fazer decolar o programa Gás para Empregar do Ministério de Minas e Energia (MME) e as iniciativas de neoindustrialização do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).

A referida resolução do CNPE, no seu artigo 12, recomenda que a Agência Nacional do Petróleo (ANP), em articulação com o MME, com o então Ministério da Economia (ME) e com o Cade, elabore diagnóstico sobre as condições concorrenciais do mercado de gás natural.

Gas release 

Bem como uma proposta de programa para a liberação progressiva de volumes do energético por parte do agente detentor de posição relevante, o gas release.

Mais recentemente, a ANP publicou o Diagnóstico Concorrencial da Indústria do Gás Natural Brasileira visando a proposta de Programa de Redução de Concentração, dando continuidade a esse importante processo de estímulo à competição no mercado.

Esse programa tem como propósito forçar a redução da concentração na oferta de gás natural.

É uma imposição, dentro de um contexto de liberalização do mercado, como medida para diminuir o peso de um agente dominante, estando tal dispositivo previsto no artigo 33 da nova Lei do Gás, através de diversos mecanismos lá elencados.

Possivelmente o programa poderá ter medidas diferenciadas entre as regiões, em função da maior ou menor concentração de mercado.

O papel dos estados

Outro aspecto importante para o desenvolvimento do mercado é a harmonização das regulações estaduais do setor de distribuição de gás natural com a regulação federal.

Estão em curso diversos processos de revisões dos marcos estaduais, em geral buscando promover a simplificação e desoneração, assim como facilitar a migração do consumidor para o mercado livre, além de desburocratizar e facilitar as transações.

Aliás, esse caminho parece irreversível, sob pena de os estados que não promoverem tais mudanças perderem competitividade perante os demais.

Sergipe entende que esse é o caminho a ser seguido e, mesmo já tendo uma das mais bem avaliadas regulações estaduais, muito em breve deverá apresentar uma nova revisão promovendo mais um avanço.

Riscos e penalidades

O processo de construção de um mercado aberto, dinâmico, líquido e competitivo, com participação de múltiplos agentes, dentro de um ambiente em que haja diversidade de fontes e de ofertantes integrados à malha de transporte, esbarra em um importante barreira que são as alocações de riscos e as penalidades contratuais, ponto central que trazemos aqui para reflexão.

Cumpre destacar inicialmente a complexidade dos diversos instrumentos que o consumidor de gás natural precisa firmar, na contratação da molécula, o transporte e a distribuição, com inúmeras obrigações e penalidades, que terminam por inibir a continuidade do processo de abertura do mercado, dificultando a entrada de novos agentes e o consequente aumento da liquidez.

Importante entender, conceitualmente, que a penalidade não pode ser objeto de vantagem ou ganho da parte mais forte da relação.

É preciso estabelecer que as penalidades só devem ser aplicadas quando um agente da relação contratual sofreu perdas em decorrência do descumprimento da outra parte.

Fora disso, seria o enriquecimento sem causa, quando a cobrança da multa se dá sem que haja perdas para o agente que a impôs.

Na verdade, a imposição de penalidade, na espécie, configura-se confisco indireto, vedado pela Constituição Federal.

A penalidade, mesmo quando prevista contratualmente, só deverá ser aplicada quando houver de fato um prejuízo a ser reparado.

Deve funcionar como uma espécie de seguro e proteção para os agentes, devendo a sua aplicação estar condicionada à ocorrência de dano ou prejuízo.

Esta situação deve ser observada em todos os elos da cadeia, em especial para o transporte e distribuição do gás natural, concessões públicas e monopólios naturais.

Mesmo a eventual devolução de multas para o conjunto dos usuários no fechamento das contas da receita máxima autorizada da concessão não é adequada, visto que penaliza diretamente um agente, terminando por inibir a entrada de diversos consumidores no mercado livre.

Transporte: custos contratuais, além das tarifas

Os contratos de suprimento de gás natural entre produtores ou comercializadores com distribuidoras e consumidores livres normalmente têm cláusulas de Take or Pay.

É a cláusula contratual na qual o comprador assume a obrigação de pagar por certa quantidade de gás contratada, independentemente de se ter utilizado dele ou não.

Em alguns casos, se previsto em contrato, o comprador pode recuperar o gás pago e não efetivamente retirado.

E de Ship or Pay, cláusula incluída nos contratos de transporte de gás natural, segundo a qual o consumidor final ou a concessionária, para quem está sendo feito o transporte, é obrigado a pagar pelo transporte do gás mesmo no caso de o gás não ser transportado. Em muitos casos, constituem encargos extremamente pesados para os consumidores.

O peso das penalidades

A cláusula de penalidade por redução de retirada de volumes (ToP) ou por ultrapassagem da QDC (quantidade diária contratada) com pagamento de Preço de Gás de Ultrapassagem (PGU), muitas vezes superior ao dobro do valor unitário da QDC, por exemplo, é abusiva e termina por inibir o desenvolvimento do mercado.

E, na realidade, o volume que deixa de ser retirado do gás contratado será direcionado para outro consumidor, mesmo que a preço inferior.

Por sua vez, quando o consumo for superior ao contratado, o gás para suprimento spot (curto prazo) poderá ter um custo superior, mas certamente não corresponde ao valor cobrado em função das cláusulas contratuais.

A camisa de força das obrigações contratuais

O razoável seria que quem falhou assuma os custos e prejuízos que tenha dado causa.

O gás que deixa de ser consumido termina ofertado a outro consumidor ou distribuidora a um preço na modalidade PUT – contrato flexível que dá ao produtor uma opção de venda a um determinado preço, mas geralmente com descontos, e, em contrapartida, o cliente tem o dever de comprar.

O consumidor que deixou de retirar o volume contratado deverá responder pelo prejuízo que deu causa, correspondente à diferença de valor contratado e da venda realizada.

Os contratos com os transportadores, tanto com entrada e saída por conta do supridor ou comercializador, como com a saída contratada pelo consumidor, têm penalidades de Ship or Pay normalmente de 100% do volume contratado.

Se houver variação para menor, deverá pagar pela totalidade da capacidade contratada e, se a variação for para maior, pagará uma tarifa majorada, independentemente se isso implicou em alguma perda para o transportador.

Isso é uma verdadeira camisa de força, imposta pelos transportadores, sem qualquer margem de flexibilidade, totalmente desalinhado com o mundo real, no qual, em função de diversas circunstâncias operacionais e produtivas, o consumo sofre variações ao longo do tempo.

Especialmente nos casos em que a entrada e saída são contratados pelo produtor, muitas vezes, quando surge uma oportunidade para o consumidor ou mesmo distribuidora de compra de um volume a um preço mais competitivo, ocorre o pagamento do transporte em duplicidade de parte do volume consumido, mesmo que a sua totalidade não tenha havido alteração.

Gasodutos com sobra

Uma questão que merece destaque nesse momento é que as transportadoras com contratos legados estão com a totalidade da capacidade contratada pela Petrobras, não tendo, portanto, qualquer perda em caso de variação do volume de cessão de capacidade para terceiros.

Esse fato ganha ainda mais relevância quando se tem notícia de que o carregamento dos gasodutos de transporte é de apenas 25% da sua capacidade, conforme informação recente de artigo publicado no portal Poder 360.

A estipulação da penalidade só faria sentido se houvesse uma demanda próxima à capacidade máxima e fosse necessário garantir uma reserva de capacidade sob o risco de não poder receber o volume de gás contratado.

O consumidor irá demandar o volume que a sua necessidade definir. Certamente ninguém irá contratar volumes desnecessários e seguramente não irá consumir ou deixar de consumir por conta de imposição da contratação da capacidade.

O transportador certamente poderia oferecer uma maior flexibilidade no patamar do Ship or Pay, já que dispõe de outros instrumentos para realocação das capacidades contratadas e eventualmente não utilizadas, como em contratos de curto prazo ou contratos interruptíveis, sem que haja venda do mesmo espaço em duplicidade.

Distribuidoras

Nos contratos das distribuidoras com os seus maiores consumidores cativos muitas vezes também constam as penalidades às quais está exposta no contrato de suprimento com os produtores.

Entretanto, por vezes, a variação de volume de um consumidor é compensada pelo conjunto dos demais consumidores cativos, fazendo com que a distribuidora não venha a assumir custos de penalidades junto ao supridor.

Ora, se o objetivo da inclusão das penalidades da distribuidora com o consumidor cativo é de proteção (hedge) da eventual incidência de multa junto ao supridor, e esta última não ocorreu, não há por que tal penalidade vir a ser aplicada.

Está noticiado na mídia o propósito da SCGás, distribuidora de gás canalizado de Santa Catarina, de renegociar com a Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG) a redução da quantidade diária contratada e evitar, assim, penalidades pelo uso a menor da capacidade do gasoduto Gasbol, em decorrência de retração do mercado em torno de 25% do seu consumo.

A cobrança de tais penalidades implicará em maiores custos para o consumidor, que certamente contribuirão para aumentar os encargos das empresas que já estão com dificuldades, em decorrência da redução de produção.

É preciso ter muita cautela e responsabilidade nessas situações, buscando soluções criativas para que não se promova a destruição do mercado.

Os riscos deverão ser paulatinamente mitigados, na medida em que o mercado desenvolva mecanismos de flexibilidade, através de projetos de estocagem e operações que poderão ser desenvolvidas por terminais de GNL, proporcionando mais liquidez, seja injetando ou retirando gás quando necessário.

Essas questões precisam ser mais bem compreendidas pelas agências reguladoras federal e estaduais para disciplinamento das possibilidades de cobrança de penalidades e, os agentes de mercado, por sua vez, precisam entender que essas práticas terminam constituindo barreiras para o desenvolvimento do setor.

Assim, os encargos e penalidades aplicadas nos contratos vigentes no país são um importante fator de encarecimento das tarifas de transporte e distribuição do gás natural e inibidor para migração de consumidores para o mercado livre.

Quanto custa a infraestrutura?

O custo do transporte no Brasil, da ordem de US$ 2,00/MM BTU, ou até mais, encarece sobremaneira o custo final do gás natural para as distribuidoras e consumidores livres.

Por sua vez, muitos contratos de concessão de distribuição de gás natural dispõem de cláusulas de retorno de investimento de 20% ao ano e remuneração de 20% de todas as despesas da operação, o que termina por onerar excessivamente as tarifas de distribuição e inviabilizar economicamente alguns investimentos na expansão da rede.

Todas essas questões, conjuntamente com o elevado preço da molécula, indexado a parâmetros internacionais, têm inibido o almejado aumento de demanda de gás no país, mesmo diante do promissor cenário de aumento de oferta de gás nos próximos anos.

É mandatório o exercício diário das transportadoras e distribuidoras de buscar desenvolver e aplicar formas de tornar menos complexas e custosas a contratação do transporte e distribuição do gás natural.

A ampliação do número de contratantes, o crescimento do volume de gás transportado e distribuído, uma maior liquidez do mercado e redução de penalidades, propiciados por tarifas mais razoáveis, juntamente com a redução do preço da molécula, serão propulsores para o desenvolvimento do mercado de gás natural.

O gás natural terá um papel fundamental no processo de transformação energética que o mundo e o Brasil estão inseridos, tanto na questão da segurança energética, através da geração termoelétrica para assegurar o suprimento nos períodos de baixa oferta, decorrente da intermitência das fontes renováveis, como na substituição de outros combustíveis fósseis com maior pegada de carbono e emissão de particulados, como o óleo diesel para caminhões e ônibus, e carvão, coque e óleo combustível para a indústria.

É preciso criar condições de competitividade na molécula do gás natural, modicidade nas tarifas de transporte e de distribuição e rever as penalidades contratuais para que possamos ter um avanço mais célere no desenvolvimento do mercado.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

Marcelo dos Santos Menezes é secretário executivo da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico de Sergipe (Sedetec).