Energia

Open Energy – como a era dos dados permite a modernização do setor, por Nayanne Brito e Guilherme Castro

O Open Energy impulsionou a oferta de soluções personalizadas para a relação com o consumo e já é realidade no Reino Unido, EUA e Canadá

Open Energy — como a era dos dados permite a modernização do setor
Open Energy é o empoderamento do consumidor dos seus dados de consumo de energia e propicia competitividade e novos modelos de negócio (foto: Siemens/Divulgação)

A humanidade aprendeu a controlar o fogo há 1,8 milhão de anos, provocando mudanças na dieta, proteção contra predadores e até hábitos sociais. Outro marco que provocou muita transformação foi a descoberta da eletricidade, há apenas 200 anos.

Controlar o fluxo de cargas elétricas permitiu à humanidade criar novas tecnologias produtivas, mais eficientes e com grande potencial de escalabilidade. Uma evolução tão significativa que hoje a eletricidade é considerada um item essencial à vida.

A disrupção atual é a Era dos Dados, que turbina a aceleração dos mercados e permite integrações nunca antes vistas. Essa já é uma realidade do setor elétrico por todo o mundo que ainda, infelizmente, o Brasil não se adequou.

Este artigo apresenta o conceito de Open Energy, traça o paralelo do cenário nacional e como outros países aproveitaram o empoderamento do consumidor e de seus próprios dados para trazer competitividade, além de novos modelos de negócio que nascem a partir da inovação do setor elétrico brasileiro.

Atualmente, os dados do consumo de eletricidade do mercado cativo são disponibilizados uma vez por mês na conta de luz, em papel impresso ou PDF recebido por e-mail.

Os consumidores livres, por sua vez, têm acesso a um arquivo com o consumo horário em um formato interoperável, mas, outras informações da conta de luz, como modalidade tarifária e demanda contratada também são disponibilizadas apenas em PDF.

Compartilhamento de dados e gerenciamento do próprio consumo

Open Energy traz uma forma alternativa de acesso a esses dados por meio de disponibilização em um formato interoperável.

Dessa forma, o consumidor integra seus dados onde agrega mais valor como informação. Open Energy é o empoderamento do consumidor dos seus próprios dados de consumo de energia.

O conceito não é nada novo, o modelo britânico de Open Energy teve início em 2008 com a mudança da legislação, regulamentando a instalação de medidores inteligentes.

O mercado dava o seu primeiro passo para quebrar a dependência do formato onde consumidores precisavam enviar suas leituras de consumo periodicamente, obrigando as comercializadoras a cobrarem por meio do consumo estimado.

A modernização permitiria ganhos de eficiência não apenas para as comercializadoras, mas também operadores e consumidores, com mais transparência e agilidade na escolha do seu fornecedor de energia elétrica.

O receio inicial com novos formatos de operação é algo comum, especialmente quando se tem acesso a dados individuais e, no caso britânico, não foi diferente.

Proteção de dados

As discussões sobre a proteção de dados e a exposição aos riscos externos, como ataques de hackers, fizeram com que o programa de instalação em massa desse início apenas em 2011, quando os medidores inteligentes de primeira geração começaram a substituir os medidores mecânicos.

Implementar o Open Energy requer um papel ativo dos agentes de mercado para demonstrar a segurança e explicar como os consumidores se beneficiam com o compartilhamento de seus dados.

O governo britânico criou uma regulamentação dedicada a esclarecer como os dados de consumo estavam protegidos.

Apenas as comercializadoras e operadores teriam acesso aos dados, desde que consentidos. Em caso de terceiros, como sites comparadores de tarifa, a permissão por parte do consumidor deveria ser solicitada para qualquer granularidade de dados.

Inovação no relacionamento com o consumo

Desde a transformação do mercado em 2008, o consumidor britânico viu empresas inovadoras surgindo no mercado e ofertando novas formas de se relacionar com o consumo de energia elétrica.

Por exemplo, de descontos na tarifa ligados à geração eólica comunitária, até remuneração para consumir em determinados horários. Este é apenas o início da revolução do mercado. Inúmeras tecnologias e novos modelos de negócio alavancados pelo Open Energy.

Nos Estados Unidos, o Open Energy existe desde 2012. A primeira versão foi a disponibilização dos dados da conta de luz em um formato interoperável, disponível no site da distribuidora.

Isto é, o consumidor podia acessar as mesmas informações da conta de luz em uma planilha, clicando em um botão verde na área logada da distribuidora — daí o nome do programa — Green Button.

Essa primeira versão permitiu que os consumidores fizessem auditoria das próprias contas, decidissem com mais propriedade a modalidade tarifária que melhor se enquadraria no seu perfil de consumo e compartilhassem dados com comercializadoras de energia para oferecer um produto mais adequado às suas necessidades.

A forma mais moderna do programa Green Button, disponível desde 2015, se dá por meio de gateway dedicado para terceiros com Interface de Programação de Aplicação (API, em inglês) aberta.

Isso significa que é possível construir um produto para os clientes interessados em compartilhar os dados com empresas terceiras. A experiência americana trouxe a construção de aplicativos sobre o consumo energético com governos estaduais, universidades com estatísticas de energia e empresas de gestão de facilities.

Outro exemplo de modelos de negócios a partir de API aberta é o Google Maps. Graças a ele, várias outras tecnologias utilizam os dados como base para desenvolvimento, como Waze e Uber.

Desenvolvimento deve focar na ‘experiência do cliente’

Pensando que em breve os consumidores terão várias soluções de energia concomitantes, é necessária uma linguagem única para oferecer uma experiência mais fluida e personalizada para o cliente.

É justamente com Open Energy que é possível que o carro elétrico acesse informações sobre contratos de energia do cliente e aponte o melhor horário para carregamento do veículo, levando em conta a produção própria e o preço de venda da energia para o vizinho.

O protocolo de Open Energy dos EUA foi adotado também no Canadá, que traz uma história interessante de uma escola que centralizou os pagamentos, acompanhando o do consumo de todas as 150 unidades, graças à adoção pioneira do programa de Open Energy por uma distribuidora de Ontário.

Por meio de casos de sucesso como este, houve pressão dos consumidores para que esse resultado pudesse ser alcançado em outras distribuidoras do país. Essa pressão culminou, em setembro do ano passado, em uma regulação de Open Energy obrigatória para todas as distribuidoras locais.

Potencial do Open Energy no Brasil

Open Energy no Brasil traz um potencial de disrupção gigantesco. Ilustrando, seria possível criar um aplicativo que, com autorização do cliente, a distribuidora trocaria informações para rankear os consumidores por consumo e assim estimular a economia de energia.

Lembrando que está válido até abril de 2022 o pagamento de R$50 a cada 100 kWh economizado para ajudar o país a passar pela crise hídrica. Imagina o impacto de um aplicativo viral estilo Pokemon Go para ajudar o país a enfrentar a crise hídrica?

Outro exemplo de aplicação para grandes consumidores, o Open Energy pode ser a peça que falta para fazer o programa de resposta à demanda deslanchar. Esse programa permite que um consumidor receba um pagamento para reduzir o consumo de energia em um determinado momento do dia.

Pagamento este, é claro, menor do que seria pago para uma geradora de energia térmica. Por meio do Open Energy seria possível que o consumidor compartilhasse seus dados com empresas autorizadas por ele, permitindo, por exemplo, o nascimento de agregadores de demanda para operar no mercado.

Um terceiro exemplo de aplicação, dessa vez para comercializadoras, seria permitir que elas acessassem de maneira mais segura os dados de consumo dos clientes, claro, mediante autorização, permitindo produtos mais adequados ao risco de variação de consumo individual.

Mais detalhadamente: um produto cada vez mais raro no mercado é o contrato de energia na curva de carga. Ou seja, o comercializador entrega exatamente a mesma quantidade de energia utilizada para o cliente em cada hora do dia. Com o preço horário, o consumidor reduz seu risco de exposição à volatilidade do preço de energia.

Porém, como o comercializador não tem acesso a informações mais detalhadas, não consegue analisar com exatidão o perfil de consumo do cliente para entregar uma precificação de risco adequada, o que levou esse produto a se tornar raro no mercado.

Compartilhamento de dados pode aumentar transparência

Do ponto de vista social, a vantagem mais hegemônica é a possibilidade de auditoria dos consumidores. Também a de aglutinação de dados para melhor estudo de políticas públicas e impacto dos subsídios existentes na conta de luz.

Recentemente, houve discussão sem fim sobre quanto custa e quais os benefícios da Geração Distribuída no Brasil. Cada consultoria e associação chegou em resultados diametralmente opostos.

Com dados abertos e interoperáveis seria possível questionar os resultados e permitir a revisão dos estudos permitindo uma quantificação mais justa dos valores envolvidos em políticas públicas.

Hoje a distribuidora de energia é a tutora dos dados dos clientes. O que ela pode ganhar em permitir o acesso dos consumidores aos próprios dados, para além da obrigação legislativa de seguir a Lei Geral de Proteção de Dados?

Por meio de APIs abertas, ela pode ter acesso às inovações, novas formas de engajar os consumidores e novas fontes de renda.

Maior engajamento dos consumidores reduz muito os custos operacionais. Para ilustrar, hoje muitos brasileiros pagam as contas de luz na lotérica, com um elevado custo operacional para as distribuidoras.

Empresas terceiras podem estimular a digitalização do pagamento dessas contas e com isso a operação da distribuidora fica mais eficiente. Vivemos algo parecido com o PIX, que surgiu do Open Banking.

Outra possibilidade do Open Energy é trazer mais players para o setor de energia interessados em financiar o medidor inteligente para seus clientes.

Na nova disrupção da Era dos Dados, garantir a interoperabilidade dos dados de energia pode ser tão transformacional quanto a própria descoberta da eletricidade.

Implementar o Open Energy traz transparência, simetria de informações e beneficia todos os agentes de mercado, mas principalmente o consumidor final.

Não há modernização do setor elétrico brasileiro sem considerar o Open Energy como um dos pilares de empoderamento do consumidor.

Nayanne Brito é Engenheira de Energia, parte do time fundador e especialista em regulação na Lemon Energia.

Guilherme Castro atua como Gerente de Projetos de Inovação na Octopus Energy e é o atual presidente da rede de jovens profissionais do Energy Institute, em Londres, além de facilitar eventos e inspirar a futura geração de profissionais de energia em todo o mundo.