RIO – Em pouco mais de quatro meses, o mercado livre de energia no Brasil pode ser aberto para todos os 202 mil consumidores do grupo A no país, que incluem clientes de alta e média tensão, assim como aqueles que recebem energia por linhas subterrâneas. Esse segmento inclui, por exemplo, indústrias, hospitais, shoppings e supermercados.
Hoje, o mercado se movimenta para atrair os novos clientes que estarão aptos a migrar a partir de janeiro de 2024. Esses consumidores vão acessar o mercado livre por meio dos comercializadores varejistas.
A abertura, no entanto, ainda carece dos últimos ajustes regulatórios para evitar distorções que podem prejudicar os demais consumidores que vão permanecer no mercado regulado, atendido exclusivamente pelas distribuidoras.
O mercado livre permite aos consumidores escolher de quem comprar a energia, enquanto a infraestrutura de distribuição segue sob responsabilidade das concessionárias.
Com isso, é possível negociar preços mais baixos, assim como escolher a fonte da eletricidade consumida, demanda que tem crescido em meio à maior busca por renováveis no combate às mudanças climáticas.
Especialistas comparam a possibilidade de o cliente escolher ao fornecedor de energia elétrica ao setor de telecomunicações, no qual os consumidores podem optar pela operadora de telefonia, por exemplo.
Entenda as principais questões sobre a abertura do mercado livre de energia elétrica:
- O que é o comercializador varejista?
- Como será feita a migração para o mercado livre?
- Como o mercado está se adaptando à abertura?
- Qual o impacto para os outros consumidores?
- Que pendências ainda precisam ser resolvidas?
- Como afeta o equilíbrio econômico das distribuidoras de energia?
- O mercado livre será aberto a todos os consumidores no futuro?
- Que outros impactos têm essa abertura do mercado?
O que muda no mercado livre em 2024?
Atualmente, podem migrar para o mercado livre os consumidores com carga acima de 500 kW. A partir de janeiro, todos os consumidores do Grupo A, de média e alta tensão, poderão migrar, independentemente da demanda.
Esses consumidores deverão migrar por meio das comercializadoras varejistas.
O que é a comercializadora varejista?
Em 2013, a Aneel criou um novo modelo de negócio dentro do ambiente de comercialização livre (ACL), o comercializador varejista.
Esse formato, em vigor desde 2016, permite ao consumidor acessar o mercado livre sem precisar aderir à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e fazer todo o processo de migração e manutenção, como modelagem dos contratos, medição, contabilização, obrigações financeiras, etc. Essas tarefas ficam a cargo do comercializador varejista.
Este mercado está aberto atualmente para consumidores com demanda acima de 500 kW. A partir de janeiro, será liberado para todos os consumidores do grupo A, independentemente da demanda.
Como será feita a migração para o mercado livre de energia elétrica?
Hoje, o mercado livre de energia conta com 34 mil consumidores, responsáveis por 39% do consumo de energia elétrica brasileiro, segundo a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel). Poucos consumidores, já que abertura começou justamente pelos grandes.
Com a abertura, na prática, consumidores de alta tensão que tenham um conta de cerca de R$ 10 mil por mês vão poder escolher a fonte da energia consumida.
A expectativa é que mais 72 mil clientes migrem para o mercado livre, já descontando aqueles que optaram por outros modelos de contratação de energia, como a geração distribuída.
Caso todos os consumidores elegíveis a partir de janeiro optem pela mudança, o ambiente de contratação livre (ACL) pode passar a responder por 46% de todo o consumo de energia no país.
O crescimento do número de consumidores no ACL se reflete também no aumento dos investimentos na geração de energia voltada para esse mercado: um estudo da Abraceel apontou que iriam para o mercado livre 70% dos R$ 142 bilhões previstos para serem investidos em geração no país entre 2021 e 2025.
A venda de energia elétrica de novas usinas no mercado livre e regulado (vendida nos leilões) é uma das estratégias dos geradores para diluir o risco dos investimentos.
Como o mercado está se adaptando à abertura?
Com a ampliação do número de clientes, um dos principais movimentos observados no mercado é o esforço das comercializadoras para atender ao varejo.
Até então, a maior parte das comercializadoras fazia as negociações da compra e venda de energia, mas os clientes também podiam negociar diretamente a compra com o gerador, pois eram registrados como agentes na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
A partir de janeiro de 2024, a previsão é que todos os novos clientes do mercado livre vão precisar ser supridos por uma comercializadora varejista.
De olho na abertura, as comercializadoras estão agora se movimentando para lidar com as necessidades desses novos clientes.
Isso ocorre porque, com a entrada no mercado de clientes com um perfil de consumo menor, vai ser necessário conquistar mais consumidores.
Assim, são empresas menores que não têm uma equipe interna para lidar com questões ligadas ao setor elétrico, papel que vai ficar a cargo das comercializadoras varejistas.
Uma pesquisa da KPMG, divulgada este mês, apontou que 78,57% das principais empresas de energia elétrica brasileiras têm processos para o atendimento regulatório e a identificação dos riscos decorrentes da abertura do mercado livre de energia.
A criação de canais de vendas específicos para o novo nicho de clientes que vai entrar no mercado a partir de 2024, por exemplo, tem sido uma das estratégias.
Diversas empresas já estão fechando contratos com os consumidores que vão poder migrar a partir de janeiro, pois os processos de desconexão do mercado regulado podem levar até seis meses.
A Trinity Energias Renováveis, por exemplo, estruturou novos produtos e formou um time comercial focado na aquisição de novos clientes.
Segundo o CEO da Trinity, João Sanches, a empresa já tem contratos com consumidores que vão migrar para o mercado livre no próximo ano.
Qual o impacto para os outros consumidores?
Entretanto, há receios de que a abertura possa gerar distorções nas tarifas daqueles que vão permanecer no mercado regulado, o que inclui os clientes residenciais.
Toda a garantia de expansão do setor elétrico, até hoje, é garantida pelos encargos pagos no ambiente regulado. Entretanto, a migração para o mercado livre reduz o número de unidades consumidoras que pagam esses custos.
“Os consumidores que permanecerem no mercado regulado podem ser penalizados com um aumento de custos em caso de uma migração expressiva de consumidores para o mercado livre, pois a redução da base de contribuintes cativos poderia gerar um aumento da parcela a ser paga por cada consumidor remanescente”, explica a coordenadora executiva do Instituto Pólis, Tama Savaget.
Isso ocorre porque a garantia física de que vai haver energia disponível no sistema, conhecida como “lastro”, tem um custo, que até então é pago pelos clientes do mercado regulado.
Representantes de associações de consumidores pedem para que os custos e a alocação de riscos sejam igualmente divididos.
“A abertura do mercado livre não é um problema, é uma oportunidade, mas é necessário administrar alguns desequilíbrios”, defende a diretora de Assuntos Técnicos e Regulatórios da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (Anace), Mariana Amim.
“Isso pode mudar se a legislação garantir que a expansão do setor deve ser arcada por tantos os consumidores, tanto do mercado regulado, quanto do mercado livre”, explica.
O tema está em discussão na Câmara dos Deputados, no projeto de lei 414/2021, da modernização do setor elétrico. O novo governo, contudo, trabalha em uma nova proposta a ser apresentada neste segundo semestre e a tramitação ainda não está clara.
O PL 414 foi aprovado no Senado em fevereiro de 2021, mas desde então está travado na Câmara dos Deputados.
O texto é relatado pelo deputado federal Fernando Coelho Filho (União/PE), ex-ministro de Minas e Energia no governo de Michel Temer.
As discussões, no entanto, foram ofuscadas pelas eleições presidenciais em 2022 e, passada a posse do novo governo, pelas medidas de ajuste fiscal e reforma tributária. A expectativa no setor é que o tema avance no Congresso Nacional até o final do ano.
Que pendências ainda precisam ser resolvidas?
Ainda existem outras questões importantes pendentes que precisam ser resolvidas antes da abertura prevista para janeiro de 2024.
Uma das definições importantes que ainda deve ocorrer diz respeito a como será feita a medição da energia consumida para faturamento dos novos clientes do mercado livre a partir do próximo ano.
Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a expectativa é abrir uma consulta pública sobre o tema ainda neste mês de agosto e finalizar a análise na última reunião da diretoria do ano, em dezembro.
Para o futuro, segundo a Abraceel, também é necessário avançar em pautas relativas à segurança do mercado e a melhorias na formação de preços do mercado elétrico.
Parte do setor defende a criação de regras prudenciais para evitar que as comercializadoras tomem riscos que possam afetar o equilíbrio do sistema elétrico.
Em 2019, as comercializadoras Vega e Linkx não conseguiram honrar os contratos e quebraram. Há quem defenda, desde então, a necessidade de se estabelecer um “supridor de última instância”, para garantir a segurança do mercado.
Na prática, como remunerar os agentes que garantem a entrega da energia aos consumidores.
Como afeta o equilíbrio econômico das distribuidoras de energia?
Além da divisão de encargos entre todos os consumidores, um ponto importante ainda em debate é o impacto que a abertura tem para as distribuidoras de energia.
Essas companhias sofrem impactos da migração para o mercado livre, pois contratam a geração para suprir os clientes com anos de antecedência e, ao perder consumidores para o mercado livre, ficam sobrecontratadas.
Por isso, também é esperado que o MME apresente uma proposta de modernização que ajude a garantir o equilíbrio econômico-financeiro das distribuidoras.
“A questão é como fazer a migração, em qual prazo e de que forma, de modo a manter o sistema elétrico equilibrado”, aponta o sócio do Campos Mello Advogados na área de energia, Fabiano Gallo.
Um tema em paralelo, debatido entre governo e mercado, é o avanço da geração própria de energia, que ocorre de forma descentralizada. Além dos benefícios para os consumidores, há ganhos para o sistema elétrico como um todo, mas a regulação dessa conta ainda depende do governo federal.
[jnews_block_29 first_title=”Nesta cobertura” exclude_post=”68978″ include_tag=”11172,3091″]
O mercado livre será aberto a todos os consumidores no futuro?
Outro tema que está em debate no PL 414/2021 é a abertura do mercado livre aos demais consumidores, incluindo os residenciais, a exemplo do que já ocorre em outros países.
Isso ainda carece, no entanto, de discussões para a simplificação e padronização do processo de migração.
A Abraceel, que representa as comercializadoras, defende que é possível prosseguir com a abertura total do mercado livre por medidas infralegais, pois a Lei 9.074/1995 deu um comando legal que autoriza o Poder Executivo a estender o acesso ao mercado livre de energia a todos os consumidores a partir de julho de 2003.
No ano passado, o MME publicou a portaria 50/2022, que permitiu a todos os consumidores de alta tensão escolher livremente o fornecedor de energia elétrica, independentemente do nível de consumo.
“A abertura completa do mercado de energia poderia estar vigente há 20 anos no Brasil, gerando uma economia fabulosa para os consumidores, que poderiam movimentar novamente a economia com os recursos economizados”, defende vice-presidente de Estratégia e Comunicação da Abraceel, Bernardo Sicsú.
“Além de gerar ganhos de produtividade e produzir desaceleração da inflação, [o mercado livre] gera empregos e crescimento. Estamos confiantes que o tema evoluirá no segundo semestre deste ano”, afirma.
Que outros impactos tem essa abertura do mercado?
Os impactos da criação do mercado livre de energia no Brasil afetam todos os consumidores e têm interferido, inclusive, em outros setores.
A transformação no setor de energia criou demandas por soluções para a gestão de dados dos medidores inteligentes e a garantia da segurança das informações.
Além disso, criou novas possibilidades para os consumidores, como novos métodos de pagamento e o uso de calculadoras de pegada de carbono, por exemplo.
“Mudanças nas medições podem impactar, inclusive, os hábitos de consumo”, diz José Paulo Mendes, líder de negócios para o segmento de energia do Sidi, instituto de ciência e tecnologia focado em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I).
Segundo Mendes, o Sidi estima que o mercado de energia vai passar a representar cerca de metade dos novos negócios desenvolvidos no instituto nos próximos cinco anos.
“Vai ser necessário fidelizar os clientes e, para isso, as empresas estão em busca de soluções para áreas como engenharia social, manutenção preditiva e segurança das informações”, explica.
Nesse contexto, Savaget, coordenadora do Instituto Pólis, defende que é importante incluir os consumidores no debate
“É essencial que haja uma ampla campanha de comunicação e educação da população sobre as implicações da abertura do mercado livre. Informar os consumidores sobre as possibilidades e desafios do novo cenário energético permitirá que tomem decisões informadas e estejam cientes das alternativas disponíveis”, diz.