Em junho de 2023, a Iniciativa Voluntária de Integridade do Mercado de Carbono (VCMI) lançou um código de conduta para orientar as empresas que adquirem créditos no mercado voluntário, na tentativa de tornar as reivindicações climáticas confiáveis.
A publicação chegou após um ano de queda na comercialização dos títulos. Dúvidas sobre qualidade de projetos e seus reais impactos climáticos levaram a uma queda de 4% no mercado voluntário de créditos de carbono em 2022, quando comparado com o mesmo período de 2021.
De acordo com levantamento da BloombergNEF, as empresas adquiriram 155 milhões de ativos para compensar suas emissões em 2022. A oferta destes créditos também cresceu pouco: apenas 2%, com 255 milhões de compensações criadas por projetos em todo o mundo.
Houve queda também na emissão de títulos por desmatamento evitado, que diminuiu em um terço na comparação anual.
Os números refletem preocupação entre as empresas com a reputação do mecanismo, após recorrentes denúncias de greenwashing por comprarem compensações de projetos de impacto ambiental questionável.
O mercado voluntário passa por uma crise de confiança, inclusive no Brasil.
Nesta segunda (31/10), reportagem da Folha revelou que a Petrobras comprou créditos de carbono para neutralizar as emissões relacionadas à gasolina Podium de um projeto com problemas na documentação da posse das terras e registros de desmatamento.
Localizado no município de Feijó, no Acre, o Envira Amazônia ocupa uma área de pouco mais de 39 mil hectares, dos quais 570 hectares – algo como 800 campos de futebol do tamanho do Maracanã – foram destinados especificamente à compensação das emissões do combustível premium da Petrobras.
Porém, antes mesmo de a Petrobras anunciar a compra dos créditos, em setembro de 2023, a Verra, certificadora do projeto, já havia negado a renovação da certificação – em maio.
A organização sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos é hoje a maior certificadora mundial de compensações voluntárias de carbono, mas seu filtro tem deixado passar alguns projetos questionáveis.
Também em 2023, os portais britânico The Guardian e o brasileiro G1 relataram denúncias envolvendo a apropriação de terras públicas no estado do Pará, por cinco empresas brasileiras e três estrangeiras, para emissão de créditos de preservação florestal.
Especialistas consultados pela agência epbr explicam que esses casos pontuais, por si só, não invalidam o mercado voluntário, um mecanismo importante para preservar florestas e ajudar empresas em suas jornadas de descarbonização. Mas trazem à luz a necessidade de uma governança mais robusta para garantir transparência e integridade.
Entenda a seguir:
- De onde vêm os créditos do mercado voluntário?
- Qual a função do mercado voluntário de carbono?
- O que tem gerado a crise de integridade?
- Como garantir a qualidade dos créditos?
De onde vêm os créditos do mercado voluntário?
Esses créditos podem ser gerados por diversos tipos de projetos de redução ou remoção de CO2, como reflorestamento, gestão de resíduos sólidos e energia renovável.
Como a transação é feita entre particulares – isto é, sem intervenção do Estado – as certificações variam, os preços e a qualidade dos títulos também.
Mas uma regra é geral: para emitir o crédito, é preciso que o projeto tenha adicionalidade. Significa dizer quanto o projeto contribuiu para que uma área deixasse de ser desmatada, por exemplo, e o que isso significa em termos de carbono.
Qual a função do mercado voluntário?
O mercado voluntário de carbono é usado por empresas para compensar suas emissões de gases de efeito estufa, por meio da compra de créditos.
A ideia é que ele seja um mecanismo complementar nas estratégias de descarbonização, usado por empresas que têm maior dificuldade de reduzir sua intensidade de emissões substituindo combustíveis fósseis e melhorando a eficiência energética, por exemplo.
O que tem gerado a crise de integridade?
“Recentemente tem-se noticiado inconsistências nos projetos, havendo uma geração maior de créditos de carbono do que realmente está sendo reduzido de emissões, além de denúncias envolvendo ameaças a povos originários e comunidades tradicionais”, lista Deisy Vanessa Granado, do Luchesi Advogados.
Dentre os fatores que podem levar a vulnerabilidade desse mercado, a advogada cita a falta de qualidade técnica de alguns projetos e de rastreabilidade, resultando em créditos fraudulentos.
Ausência de mecanismos auditáveis que observem requisitos que vão além dos formais, metodologias carentes de taxonomia e falta de fiscalização governamental, são outros pontos.
Tatiana Cymbalista, sócia da Manesco Advogados, conta que recentemente houve uma crise de credibilidade dos créditos de carbono, sobretudo aos associados ao REDD+, de manutenção da floresta em pé, porque eles dependem de estimativas de redução de emissões que são mais difíceis de calcular que as dos empreendimentos de energia, por exemplo.
“Para você atestar que houve sequestro ou evitou emissão de gás de efeito estufa, é preciso estimar, nesse caso, qual era o risco daquela floresta ir para o chão sem o projeto. É esse delta que vai dar a quantidade de créditos de carbono”, explica.
“Se for lá no fundo da Amazônia, em um lugar superprotegido, o crédito de carbono tende a ser pequenininho. Se for bem na fronteira agrícola, ali no Mato Grosso, você tem muito mais crédito de carbono porque você contribuiu mais para essa floresta ficar em pé”, completa.
Questões fundiárias
A deficiência de dados fundiários em imóveis localizados, sobretudo, na região Amazônica é um ponto que pode contribuir para problemas como o denunciado no Pará, na medida em que gera incertezas com relação à titularidade dos imóveis e quem pode, de fato, autorizar atividades naquela determinada área, analisa o advogado Guilherme Leal, sócio do escritório Graça Couto.
Ele observa que o caso específico do Pará, embora possa ser considerado pontual e insuficiente para “deflagrar uma falta de credibilidade no mercado voluntário”, traz à tona a repercussão de disputas fundiárias na geração de créditos.
“É preciso cautela para não generalizar e se criar uma crise de credibilidade com base em ações pontuais que ainda não foram contestadas e sequer decididas. Há um problema fundiário no Brasil que pode contribuir para essas disputas”, comenta.
Leal explica que, mesmo as firmas de verificação usando metodologias que buscam garantir a credibilidade dos créditos, dificilmente elas serão suficientes para solucionar um problema crônico fundiário brasileiro.
“Essa é uma questão mais ampla, que não é específica desse mercado. A questão é qual será o grau de certeza fundiária que a certificação vai exigir para ser emitida”, aponta.
“O problema é o problema do espaço, a ocupação territorial brasileira e o conflito rural e urbano. Isso tem surgido como um ponto que merece atenção”.
Aprovado pelo Senado e em discussão na Câmara, o PL 412/22, que cria o mercado regulado de carbono, prevê também a definição de algumas regras que visam dar mais credibilidade aos títulos do voluntário.
Para Leal, a solução para essas questões fundiárias, no entanto, é mais ampla.
“Ela tem um aspecto prático, de registro de imóvel, de sobreposição, de grilagem, de crime, de falsificação de documentos. É um problema muito maior”, enumera.
Mercado secundário
Jean Marc Sasson, especialista em Direito Ambiental, co-fundador e diretor Jurídico da Atmmos, chama atenção ainda para criação de um mercado secundário, onde os agentes compram crédito carbono para especular e vender em alta.
Ou a não aposentadoria do título – quando uma organização compensa as suas emissões e não retira o crédito de circulação.
“Uma vez compensada [a tonelada de carbono], é preciso aposentar o crédito onde ele foi gerado. Isso é feito manualmente, pelo próprio gerador. Mas alguns não fazem. Isso tem gerado um debate de utilização do mesmo crédito mais uma vez”, explica Sasson.
Como garantir a qualidade dos créditos?
Segundo Cymbalista, o próprio setor privado tem se engajado em um movimento para garantir que haja cada vez mais seriedade, uniformização e padrão nos créditos que são emitidos.
“Tem os movimentos estatais também que tentam reconhecer essas metodologias, falar essa daqui faz sentido, essa não faz. Tem que estar atrelado à ciência, tem que seguir os passos para certificação”, conta.
A advogada menciona o próprio caso da Verra, que anunciou a revisão dos seus critérios para diferenciar as florestas tropicais das florestas temperadas, onde a certificadora desenhou seus padrões.
Isso contribuiu para segurar a emissão de créditos, que vinha dobrando anualmente e levantando dúvidas sobre a real contribuição climática das transações.
Auditoria e blockchain
A recomendação do diretor da Atmmos é usar a tecnologia para trazer mais transparência e fazer auditorias independentes para verificar a origem dos créditos.
“O que eu sempre sugiro para quem for comprar esses créditos de carbono é que audite, porque o processo de geração dos títulos, muitas vezes, não é transparente”.
Sasson avalia que a auditoria independente é importante para entender quem é o proprietário, a origem do crédito e sua geração de valor.
“Porque se você compra um crédito que não é íntegro, você está estimulando, no final das contas, condutas ilegais, como grilagem, desmatamento e por aí vai. Então é muito importante fazer essa auditoria para assegurar que o que você está comprando de fato é íntegro, você não está comprando lebre em vez de gato”.
O blockchain também pode ser um aliado. Outra recomendação de Sasson é tokenizar o crédito de carbono.
“O blockchain é uma tecnologia que traz a rastreabilidade do crédito. Permite acompanhar todas as transações, desde quando ele foi gerado até o status atual, o que foi feito com ele. Isso traz muita transparência e, logicamente, influencia na integridade do próprio crédito”, defende.
Ele conta que algumas iniciativas já usam inteligência artificial e imagens de satélite que permitem ver onde o projeto está localizado, aumentando a eficiência da checagem.