Ao longo dos últimos meses, ganharam tração os esforços para instituir o marco legal para desenvolvimento da economia do hidrogênio no Brasil, com foco em mecanismos que possam incentivar a produção e uso do hidrogênio de baixo carbono (e dos seus derivados), tanto como vetor energético quanto como insumo industrial.
Isso ficou nítido não apenas no âmbito do Governo Federal, com destaque para o papel do Ministério de Minas e Energia (MME) e demais entes da administração pública que compõem o Comitê Gestor do Programa Nacional do Hidrogênio (Coges-PNH2), mas também no Congresso Nacional.
Nesse contexto, merece reconhecimento a atuação da Comissão Especial de Debate de Políticas Públicas sobre Hidrogênio Verde (CEHV), do Senado Federal, presidida pelo Senador Cid Gomes, e da Comissão Especial de Transição Energética e Produção de Hidrogênio Verde, da Câmara dos Deputados, presidida pelo Deputado Arnaldo Jardim.
Em 29 de setembro, a Comissão Especial do Senado Federal divulgou uma minuta de projeto de lei em que ficou nítido o amadurecimento do debate acerca da economia do hidrogênio no país, com visão mais abrangente do tema em comparação com as iniciativas anteriores de legislação, ainda incipientes.
Em 10 de outubro, foi a vez de a Comissão Especial da Câmara dos Deputados apresentar uma proposta de texto que, atenta ao que a precedeu, introduziu aperfeiçoamentos relevantes de técnica e conteúdo.
Ainda assim, há espaço para aperfeiçoamento da proposta de marco legal para regular a economia do hidrogênio no Brasil, sob risco de efeitos colaterais indesejados.
As discussões acerca dos pontos de conteúdo, como quais serão os mecanismos da política nacional de incentivo ao hidrogênio de baixo carbono, são fundamentais. E devem ser concluídas de maneira a acomodar de forma justa e sustentável os diversos interesses envolvidos. Antes disso, contudo, é oportuno um “freio de arrumação” para que se considere a estrutura da lei que se pretende aprovar. E isso passa por três diretrizes.
PNH2 é o começo
A primeira, como boa técnica legislativa, é de que o texto deve partir do geral ao especial. Isso significa iniciar com a instituição do Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), para ratificar e estabilizar a iniciativa do MME, originada por resolução do Conselho Nacional de Pesquisa Energética (CNPE).
Uma vez que o PNH2 contempla o hidrogênio de modo geral, isto é, independentemente do uso ou aplicação – se aplicado como vetor energético ou como insumo industrial – , bem como do nível de emissão de gases de efeito estufa – se hidrogênio qualificado como de baixo carbono ou não.
E para que o PNH2 possa promover a articulação entre esses diferentes aspectos – todos relevantes – do tema do hidrogênio, a arquitetura de governança institucional deve considerar não apenas o CNPE, para orientar a aplicação do hidrogênio no contexto da política energética nacional, mas também o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), para fazer o mesmo no contexto da política industrial nacional, ajudando a promover a chamada “neoindustrialização”.
E, ainda, a Comissão Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM) – com relação à compatibilização dos planos de ação e da regulamentação dos mecanismos de incentivo e de outras matérias relevantes no âmbito do PNH2 com os objetivos da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), definidos no artigo 4º da Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009 –, especialmente, (i) a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático, (ii) a redução das emissões antrópicas de gases de efeito estufa em relação às suas diferentes fontes e (iii) o estímulo ao desenvolvimento do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE).
Regime dual para a economia do hidrogênio
A segunda diretriz, ainda sem entrar na questão do nível de emissão de gases de efeito estufa – se hidrogênio qualificado como de baixo carbono ou não – , é que a estrutura ideal deveria prever um regime dual para a regulação da economia do hidrogênio.
Quanto à aplicação do hidrogênio como vetor energético, parece fazer sentido adotar um regime regulado, condicionando a exploração das atividades relacionadas à obtenção de autorização prévia junto à Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), como agência reguladora competente.
A regulamentação deverá considerar temas como compartilhamento de infraestruturas de transporte e armazenamento de gás natural, por exemplo, e compatibilização com as normas existentes sobre combustíveis em geral.
A situação é diversa, contudo, quando se considera a aplicação do hidrogênio como insumo industrial. Afinal, o hidrogênio já é amplamente usado pela indústria no Brasil – não o hidrogênio de baixo carbono, mas ainda assim se trata de economia do hidrogênio. Em princípio, não se identifica falha de mercado ou outra justificativa para a adoção de regime regulado quanto a essa aplicação do hidrogênio, razão pela qual parece fazer sentido preservar aqui o regime de livre iniciativa.
De resto, ainda que houvesse necessidade de regulação, seria questionável pretender atribuir à ANP competências relativas a usos do hidrogênio (ou derivados) diversos da sua aplicação como vetor energético.
Incentivo ao hidrogênio de baixo carbono
E, por último, é apenas após instituir o PNH2, com uma arquitetura adequada de governança institucional, e estabelecer as linhas gerais da regulação do hidrogênio conforme a sua aplicação, que o marco legal deve endereçar o tema crucial de introduzir uma política nacional de incentivo ao hidrogênio de baixo carbono.
É, então, que o texto da lei deverá definir a taxonomia do hidrogênio, isto é, os tipos de hidrogênio com base no nível de emissões de gases de efeito estufa, na fonte renovável da energia utilizada no processo, etc.
Já parece haver consenso razoável de que o chamado “hidrogênio verde”, produzido pela eletrólise da água a partir de fontes renováveis de geração de energia elétrica, deve ser considerado como uma das espécies do gênero “hidrogênio de baixo carbono”, ao lado de outras espécies, outras rotas tecnológicas, cujos processos de produção também se mantenham abaixo de nível aceitável de emissão de gases de efeito estufa.
Nesta cobertura:
- Associação defende inclusão de fósseis em marco legal do hidrogênio
- Geradores defendem política para o hidrogênio sem a rota do gás natural
- CNT defende subsídios para hidrogênio no transporte
É nesse contexto que parece fazer sentido regular o processo de certificação do hidrogênio (e dos seus derivados, no que couber), mantendo flexibilidade em sede de lei para permitir eventuais ajustes no âmbito do PNH2.
Afinal, a taxonomia e a certificação serão importantes não para fins regulatórios, mas para fins de fruição dos mecanismos de incentivo previstos na política nacional para destravar investimentos em projetos de produção e uso de hidrogênio de baixo carbono, seja como vetor energético ou como insumo industrial.
Observadas essas diretrizes para aperfeiçoamento estrutural, a proposta de marco legal para regular a economia do hidrogênio no Brasil terá fundações mais sólidas. Isso permitirá um tratamento mais adequado dos pontos de conteúdo e, assim, melhores condições de segurança jurídica para o desenvolvimento sustentável da economia do hidrogênio no país, com destaque para o hidrogênio de baixo carbono em suas diversas aplicações.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Marcos de Campos Ludwig é sócio da área de energia, infraestrutura e projetos do escritório Veirano Advogados, Rio de Janeiro; membro do Conselho Empresarial de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro – Firjan; membro da Diretoria e do Grupo de Trabalho sobre Hidrogênio Verde da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha (AHK); membro do Conselho de Administração da Câmara de Comércio e Indústria França-Brasil (CCIFB) – E-mail: [email protected]