O recente interesse do Brasil em explorar possibilidades de importação de gás de xisto do campo de Vaca Muerta, na Argentina, tem ressaltado a importância de revigorar iniciativas direcionadas à segurança energética regional e à integração física na América do Sul. Uma das principais motivações do governo do Brasil nessa empreitada é a queda da oferta do gás boliviano.
A redução do fornecimento proveniente do país vizinho fez com que a Petrobras tivesse de renegociar o contrato de gás natural boliviano para garantir um volume de 20 milhões de metros cúbicos por dia. Não é de hoje que o futuro das reservas do combustível da Bolívia consiste em um problema.
Segundo dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), de 2012 a 2021, os volumes de gás natural importados da Bolívia pelo Brasil caíram de 10,08 milhões de metros cúbicos para 7,32 milhões.
Esse movimento representou também uma redução dos gastos brasileiros, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Em 2012, o Brasil gastou aproximadamente US$ 3,41 bilhões, enquanto em 2021, desembolsou US$ 1,18 bilhão.
Em 2023, o presidente boliviano Luis Arce declarou que as reservas de gás estavam se esgotando, o que significaria uma interrupção do fluxo de exportação para Brasil e Argentina. As expectativas são de que, após 2029, a Bolívia se tornará dependente de importações. Esse quadro deve representar um desafio para a integração regional. Afinal, o que está em jogo é a segurança energética sul-americana.
Uma das saídas aventadas para substituir o gás boliviano e assegurar a garantia do fornecimento do combustível são, como dito inicialmente, as reservas argentinas.
Em 2023, a Argentina inaugurou o gasoduto Presidente Néstor Kirchner, cujo primeiro trecho conecta o campo de Vaca Muerta até a cidade de Buenos Aires. Prevê-se um segundo trecho, que se estenderia até o norte do país, chegando à província de Santa Fé.
A partir desse ponto, o gasoduto precisaria ser ampliado para que pudesse chegar em solo brasileiro. Durante o governo de Alberto Fernández, o presidente Lula (PT) deu declarações de que o Brasil poderia ajudar a financiar a obra do segundo trecho por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Porém, após a eleição de Javier Milei, os planos de financiamento foram deixados de lado.
Não obstante, as administrações de ambos os países buscaram aproximação com o intuito de aprofundar a cooperação energética. Em abril deste ano, os ministros das Relações Exteriores do Brasil e da Argentina, respectivamente, Mauro Vieira e Diana Mondino, reuniram-se para discutir a possibilidade futura de importação do gás argentino pelo Brasil.
Mondino afirmou que há um alinhamento de interesses, tendo em vista que a Argentina tem a capacidade de produção que atenderia às necessidades do Brasil.
Vieira seguiu a mesma linha, dizendo que o Brasil pode exportar insumos para a construção das etapas posteriores do gasoduto, o que geraria condições de chegada do gás ao Sul do Brasil.
Se efetivada, uma maior cooperação entre Brasil e Argentina poderia renovar os esforços pelo aprofundamento da integração regional, embora as divergências ideológico-políticas entre os governos atuais constituam um obstáculo, principalmente em relação a qual tipo de integração se deve seguir.
Essas diferenças ficaram claras a partir de meados da década de 2010, quando governos de orientação progressista desocuparam o poder e foram substituídos por administrações mais conservadoras, culminando no enfraquecimento da chamada “onda rosa”.
Desse modo, a Unasul, instituição central, criada com o intuito de propiciar maior integração entre as nações sul-americanas, foi esvaziada e deu lugar ao Prosul, um arranjo que mal saiu do papel e que careceu de institucionalidade. A Unasul era importante por não ser apenas um instrumento de integração política.
Sua estrutura, formada a partir de conselhos, abrangia vários temas estratégicos, como é o caso da integração energética. O Conselho de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) absorveu a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), um mecanismo que visava aprofundar a integração regional a partir de diversas áreas e eixos geográficos.
No âmbito do Cosiplan/IIRSA, foram definidos grupos de trabalho para estruturar questões relacionadas à infraestrutura de transportes, mas um deles era destinado somente ao setor de energia, o chamado Grupo Energético.
No plano de atividades do Cosiplan/IIRSA, já se previa a implementação de diversos projetos que pretendiam garantir maior segurança energética nos países sul-americanos.
Dentre eles, destacava-se o Gasoduto do Nordeste Argentino (GNEA), que era o de maior porte no Eixo Mercosul. Ele integrava a Agenda de Projetos Prioritários de Integração e possibilitaria a interconexão entre as reservas de gás argentinas e bolivianas.
A queda da produção do gás boliviano acende o alerta sobre a necessidade de retomada dos projetos de integração energética. O esgotamento das reservas do país andino é uma realidade que precisa ser enfrentada urgentemente.
E a garantia da segurança energética regional passa, certamente, pelo aprofundamento dos laços de cooperação, o que envolve a recuperação do objetivo de integrar as infraestruturas físicas do continente sul-americano por meio da implementação de novos projetos e daqueles que já haviam sido desenhados anteriormente.
No entanto, a dúvida que permanece é se as diferenças de orientação ideológica e política não irão afetar uma possível nova empreitada rumo ao abastecimento energético e ao desenvolvimento da América do Sul.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
André Leão é pesquisador do Ineep (Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) e doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).