Por Ali Hage e Tito Rosa
O fim da LIBOR, a essa altura, pode não ser mais uma grande novidade no universo bancário e dos contratos financeiros. Mas o quanto isso tem sido debatido na indústria de petróleo e gás, especialmente considerando os contratos não financeiros que utilizam a taxa para alguma finalidade?
A LIBOR será descontinuada no final de 2021 e precisamos discutir quais são as implicações para os contratos do setor e quais medidas podem ser tomadas desde já.
Criada em 1986 para permitir que bancos definissem taxas de juros objetivas e confiáveis para empréstimos corporativos, a LIBOR é uma taxa de juros calculada a partir da média de índices hipotéticos apresentados por um painel dos principais bancos globais em Londres. Seu uso como uma taxa de juros “básica” acabou por se estender para contratos financeiros e comerciais em todo o mundo. Estima-se que, atualmente, a LIBOR esteja incorporada em ao menos 340 trilhões de dólares em contratos ao redor do globo, desde hipotecas residenciais até derivativos complexos, passando por contratos operacionais e de joint ventures.
Ocorre que sua credibilidade tem sido severamente corroída nos últimos anos, seja pela metodologia de cálculo subjetiva ou pela ausência de uma supervisão regulatória mais significativa. Alegações de fraude e manipulação de taxas surgiram pela primeira vez em 2008, quando constatou-se que bancos estavam inflando ou deflacionando falsamente suas taxas para lucrar com operações ou criar uma ilusória robustez creditícia.
Mais de uma dúzia de bancos incorreu em multas ultrapassando a casa dos bilhões de dólares. Como resultado, a Autoridade de Conduta Financeira (FCA) do Reino Unido decidiu que não mais obrigará os bancos a enviar estimativas para cálculo da LIBOR após 31 de dezembro de 2021.
A substituição da LIBOR em larga escala, no entanto, está se mostrando cara e complicada. Não há substituto ou alternativa óbvia e alguns países estão adotando seus próprios parâmetros de referência. Os Estados Unidos estão liderando o caminho com um comércio em expansão de derivativos vinculados à sua nova taxa SOFR; o Banco Central Europeu começou a publicar a ESTR, sua nova referência de taxa de juros, no início deste mês; e, no Reino Unido, investidores profissionais, tais como fundos especulativos e fundos de pensão, também já estão negociando contratos de derivativos vinculados à Sterling Overnight Interbank Average, ou SONIA.
Hoje, a LIBOR é amplamente utilizada nos contratos da indústria de O&G, especialmente para fornecer uma taxa de juros aplicável em casos de inadimplemento contratual, sem previsão específica sobre como lidar com sua indisponibilidade. A aderência maciça à LIBOR pela indústria nesses termos é facilmente visualizada nos “contratos padrão” disponibilizados pelos múltiplos órgãos curadores das melhores práticas do setor, como a Association of International Petroleum Negotiators – AIPN. Dentre os contratos padrão altamente difundidos que preconizam o índice, cabe destaque:
- Joint Operating Agreement (JOA) – Association of International Petroleum Negotiators – AIPN;
- Joint Operating Agreement (JOA) – Oil & Gas UK – OGUK;
- Gas Sales Agreement – AIPN;
- Lifting Agreement – AIPN
- Production Handling Agreement – American Association of Professional Landmen (AAPL).
Isso já foi identificado na recente revisão, pela AIPN, do seu modelo para acordos de unitização, Unitization and Unit Operating Agreement (UUOA), que agora conta com redação sugerindo a eleição de taxa alternativa à LIBOR. Entretanto, essa mudança ampara apenas novos contratos, ainda não assinados.
Como a LIBOR está essencialmente associada ao exercício de proteções contra descumprimentos desses contratos, o risco da incerteza sobre o substituto mais adequado pode enfraquecer ou retardar o exercício dessas proteções de forma considerável, com o surgimento de disputas paralelas e secundárias ao mérito do inadimplemento. Dessa forma, com a iminente descontinuação da Libor, a necessidade de aditamento das respectivas cláusulas contratuais ganha certa urgência.
Para melhor visualizar o volume de negócios afetado pelo fim da LIBOR na indústria nacional, basta um simples exercício: segundo dados da ANP, cerca de 45% das concessões nacionais são exploradas em consórcio por mais de uma empresa, o que torna presumível a existência de aproximadamente 120 JOAs referenciando a taxa em extinção. Isso tudo além dos demais e numerosos contratos operacionais, de projeto e transacionais que também são lastreados no índice e estão em efeito no Brasil.
Para mais, é comum que os contratos de compra e venda de hidrocarbonetos, principalmente nos casos de transações internacionais, possuam cláusulas de inadimplência ou atraso no pagamento que utilizam uma medida “LIBOR plus” para a taxa de juros aplicável. A referência a LIBOR nesses moldes também se repete em diversos documentos utilizados por companhias petroleiras multinacionais para transações, parcerias e contratação de bens e serviços.
Portanto, em um primeiro momento, empresas do setor devem considerar inventariar todos os seus contratos com referência à LIBOR a fim de conceber estratégias eficientes para a comunicação com as contrapartes e posterior aditamento dos instrumentos com a finalidade estabelecer mecanismos e alternativas lidando com a futura indisponibilidade da LIBOR.
Como não existem alternativas óbvias quanto a taxas substitutas, as vantagens e desvantagens específicas a cada um dos potenciais índices mencionados acima tornam indispensável, ao menos por enquanto, uma cuidadosa avaliação caso-a-caso sobre a direção ser tomada em cada contrato: uma discussão que se torna impraticável no contexto do exercício de remédios contratuais contra um inadimplemento, quando as partes poderão estar em disputa.
Outros fatores também demandarão cuidado. Por exemplo, a Instrução Normativa RFB nº 1791/2017, que dispõe sobre a aplicação do regime tributário e aduaneiro especial de utilização econômica de bens destinados às atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural, o Repetro-Sped, também se utiliza da taxa, ao estabelecer que só poderão se beneficiar do regime os bens alugados cujo valor seja inferior ou igual ao valor dos bens vinculados ao respectivo contrato, ajustados a valor presente, considerando a LIBOR. Igualmente, as regras de preços de transferência em empréstimos intercompany contêm referências à LIBOR, e deverão ser ajustadas no futuro.
Em resumo, a substituição da LIBOR terá um impacto significativo globalmente, e não só em instrumentos financeiros. As empresas de petróleo e gás devem considerar o impacto em suas atividades e tomar medidas oportunas para revisitar contratos existentes, monitorar cuidadosamente a execução de novos instrumentos e antecipar outras consequências que se apresentarão.
Ali Hage e Tito Rosa são, respectivamente, sócio e associado da área de óleo e gás do Veirano Advogados.
Veirano Advogados assessora empresas envolvidas em todos os elos da cadeia de valor da indústria de petróleo e gás, em todas as áreas do direito.
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