Biocombustíveis

O BioQAV de Schrödinger da aviação civil

Avaliação da redução das emissões do SAF de óleo de soja inclui a análise do ciclo de vida da oleaginosa, produção, transporte e uso do biocombustível, escreve Marcelo Gauto

Mercado de biocombustíveis mobiliza marco legal. Na imagem: Biocombustível de aviação abastece aeronave da United no Aeroporto Internacional de São Francisco, nos EUA (Foto: Divulgação)
Biocombustível de aviação abastece aeronave da United no Aeroporto Internacional de San Francisco, nos EUA (Foto: Divulgação)

O excepcional físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) formulou em 1935 uma experiência mental para ilustrar a interpretação da mecânica quântica de um sistema subatômico, que ficou amplamente conhecida como a experiência do “Gato de Schrödinger”.

No experimento, fictício, um gato é colocado dentro de uma caixa fechada junto com um aparato contendo um composto radioativo que pode se decompor a qualquer momento. O aparato está conectado a um dispositivo que pode quebrar um frasco de veneno letal para o gato, caso ocorra a decomposição do composto.

Como não é possível prever quando a decomposição vai ocorrer, o gato estaria em um estado de superposição, em que ele estaria simultaneamente vivo e morto, até o momento em que a caixa fosse aberta e o estado do sistema fosse observado.

Pela mecânica quântica probabilística, antes de abrir a caixa, coexistem as chances de ele ter morrido ou de estar vivo, mas também a combinação dos dois estados, vivo e morto, ao mesmo tempo. Por mais estranho que pareça, o mundo subatômico tem dessas coisas. Mas não é só ele.

As metas da aviação civil e o SAF

Dando uma pausa aqui sobre experimentos quânticos, para refazer o link mais adiante, é importante comentar sobre as metas de redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) da aviação civil.

A Organização da Aviação Civil Internacional (Icao, na sigla em inglês), à luz do Acordo de Paris, tem metas postas para redução dos GEE dos voos internacionais, que serão cumpridas a partir de 2024 por 115 países voluntários e em 2027 por todos os demais países que possuem um nível mínimo de emissões, como o Brasil.

Sem adentrar no detalhamento das metas e das regras envolvidas, vale saber que as soluções em curso para que se consiga reduzir as emissões dos voos envolvem melhorias tecnológicas das aeronaves, maior eficiência nas operações e rotas e, especialmente, o uso de combustíveis de aviação sustentáveis (SAFs – Sustainable Aviation Fuels, em inglês).

Políticas para a produção do SAF e outras mudanças no Renovabio serão discutidas no Congresso Nacional, segundo indicação do governo federal, que presente apresentar o projeto de lei do Combustível do Futuro.

Rotas para produção de SAF

Existem variadas rotas tecnológicas e matérias-primas possíveis para produção de combustíveis de aviação sustentáveis.

Uma das rotas bastante interessante para o Brasil é a que utiliza óleos vegetais para produção de SAF, embora não seja a única.

Sendo o Brasil um dos maiores produtores de soja, é natural que o óleo de soja seja considerado principal matéria-prima elencada para produção de SAF, assim como já o é para a produção de biodiesel e Diesel R no país, por exemplo.

Para se avaliar a redução das emissões de GEE do SAF produzido a partir de óleo de soja, é preciso adentrar na avaliação do ciclo de vida (ACV) da oleaginosa, da produção, transporte e uso do biocombustível.

A Icao, através de um programa chamado Corsia (Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation), que entre outras coisas elenca os combustíveis elegíveis ao programa, determinou valores-padrão para as emissões de SAF produzidos mundo afora.

Para SAF derivado de óleo de soja, tem-se na tabela 1 os valores colocados pelo Corsia para rota de hidrogenação do óleo.

Tabela 1 – Valores-padrão das intensidades de carbono do óleo de soja para SAF elegível ao Corsia, considerando hidroprocessamento do óleo vegetal (Fonte: Icao, 2023)
Tabela 1 – Valores-padrão das intensidades de carbono do óleo de soja para SAF elegível ao Corsia, considerando hidroprocessamento do óleo vegetal (Fonte: Icao, 2023)

De pronto, salta aos olhos que o Corsia considera que a intensidade de carbono derivada do estudo de ciclo de vida em qualquer lugar do mundo é o mesmo. Isso por si só é questionável, porque não leva em consideração as particularidades de como ou onde o óleo de soja foi produzido. Mas isso renderia outra conversa, que fica para um próximo artigo.

Segundo ponto importante é que o programa considera um valor significativo para mudanças de uso da terra.

De forma resumida, o ILUC (Indirect Land Use Change), neste quadro, considera que a soja, ao ocupar determinada área, deslocou, “empurrou”, outra atividade para uma nova área, gerando com esta expansão por deslocamento emissões indiretas de carbono da ordem de 27 gCO2e/MJ.

A hipótese muitas vezes comentada é de que o aumento da área plantada de uma oleaginosa estaria deslocando a atividade agropecuária para outras regiões, não só no Brasil, gerando desmatamento e emissões de GEE de forma indireta.

Bioquerosene de aviação (BioQAV) e Renovabio

Saindo do âmbito internacional para o nacional, a certificação de um BioQAV através do Renovabio é algo esperado nos próximos anos no Brasil.

Diferentemente do programa internacional Corsia, o Renovabio não considera um ILUC para compor as emissões totais de GEE do SAF produzido.

Isso porque o programa nacional considera elegível apenas biocombustíveis provenientes de áreas não desmatadas [1]. A premissa é importante, mas tem recebido críticas pelo fato de desconsiderar por completo o ILUC.

Utilizando dados típicos de produção do óleo de soja brasileiro, previstos na Resolução ANP 758/18, estima-se que um BioQAV obtido a partir de óleo de soja no Brasil tenha intensidade de carbono total entre 25 gCO2e/MJ e 30 gCO2e/MJ [2].

Observa-se que o valor seria menos da metade daquele considerado pelo Corsia para a mesma matéria-prima e rota de produção. Essa diferença pode nos levar a um paradoxo nos próximos anos.

O “BioQAV de Schrödinger”

Imagine-se um BioQAV, que é um combustível sustentável de aviação (SAF) [3], produzido a partir de óleo de soja no Brasil, estocado em um tanque de armazenamento dentro de um aeroporto que tem voos nacionais e internacionais acontecendo.

Considerando as atuais regras, esse SAF pode ter emissões totais estimadas de 25-30 gCO2e/MJ, se ele for certificado pelo Renovabio para voos nacionais, ou de 67,4g CO2e/MJ se ele for certificado pelo Corsia para voos internacionais.

Voltando ao início do artigo, em analogia ao “Gato de Schrödinger”, o SAF brasileiro pode ser Renovabio ou Corsia e, inclusive, Renovabio e Corsia simultaneamente dentro do tanque de uma aeronave.

Teremos aqui o paradoxo do BioQAV de soja que emite o dobro ou a metade das emissões ao mesmo tempo, no que se pode chamar de “BioQAV de Schrödinger”.

O paradoxo gerado tem causa nas diferenças metodológicas existentes entre os dois programas de certificação e merecerá atenção nos próximos anos, em especial em relação ao ILUC.

Enquanto um SAF derivado de óleo de soja terá X “créditos de carbono” certificados pelo Corsia para voos internacionais, o mesmo combustível pode gerar mais de 2X créditos quando certificado por Renovabio para voos nacionais, segundo as atuais regras vigentes.

Até que se defina o destino do avião, o combustível estará “internacional” e “nacional”, numa superposição de estados que geram créditos de emissões reduzidos e aumentados simultaneamente. Que mundo mais louco este da “aviação quântica”. “Senhores passageiros, tem um gato solto dentro do avião. Ou não”.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

Notas

[1] Para participar do Renovabio é preciso comprovar que não houve desmatamento na área plantada a partir de 2018. Além de não considerar ILUC, a data de referência Renovabio diverge do Corsia, que igualmente exige que não tenha ocorrido desmatamento na área plantada, mas a partir de 2008.

[2] Estimativa feita pelo autor.

[3] Vale ressaltar que nem todo SAF é um biocombustível, mas um BioQAV, se produzido de forma sustentável, pode ser considerado um SAF.

Referência

ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis). RESOLUÇÃO ANP Nº 758, DE 23.11.2018, DOU 27 DE NOVEMBRO DE 2018. Disponível em: <https://atosoficiais.com.br/anp/resolucao-n-758-2018-regulamenta-a-certificacao-da-producao-ou-importacao-eficiente-de-biocombustiveis-de-que-trata-o-art-18-da-lei-no-13-576-de-26-de-dezembro-de-2017-e-o-credenciamento-de-firmas-inspetoras>. Acessado em maio de 2023.

OACI. CORSIA Elegible Fuels. Disponível em: <https://www.icao.int/environmental-protection/CORSIA/Pages/CORSIA-Eligible-Fuels.aspx>. Acessado em maio de 2023.