A Câmara dos Deputados concluiu no dia 17/03/2021 a votação do Projeto de Lei n. 4.476/2020 (“PL”), apelidado de Nova Lei do Gás, após rejeitar as inclusões do Senado Federal. O texto ainda passará pela análise presidencial. O objetivo deste novo marco regulatório é fomentar a formação de um mercado de gás natural aberto, dinâmico e competitivo.
A Nova Lei do Gás chega em um momento em que o cenário do setor de gás já é bem diferente do momento que o País vivia em 2009, quando entrou em vigor o atual marco regulatório. Hoje, diversos movimentos já estão em curso para alterar o cenário vigente até então, em que uma única empresa detinha um monopólio de fato em diversos segmentos do setor, com posição indiscutivelmente preponderante no mercado como um todo.
Dentre esses movimentos, podemos citar: (i) desinvestimentos da Petrobras em suas subsidiárias dedicadas ao gás natural, (ii) propostas de contratos de transporte nos modelos de entradas e saídas, (iii) uso compartilhado de UPGNs, (iv) projetos de distribuição de gás natural liquefeito (GNL) em pequena escala (“small scale LNG”) para suprimento de gás natural em áreas que não são atendidas por gasodutos, (v) além da entrada em operação de novos terminais de GNL operados por empresas privadas e vinculados a térmicas, adicionados a vários outros projetos de terminais em fase de estudos e implantação.
Neste momento de transformação do mercado brasileiro de gás natural, o GNL tem papel relevante. Uma das principais vantagens do GNL são os preços competitivos, uma vez que o produto é comercializado no mercado internacional. Este aspecto foi comprovado pela preponderância de projetos de termelétricas movidas a gás natural nos últimos leilões da ANEEL – 18,1GW dos 21GWs habilitados no leilão de energia A-6, realizado em outubro de 2019 pela EPE, correspondem a projetos de térmicas a gás. Outras vantagens do GNL consistem na flexibilidade de origem e na alternativa para a queda de produção ou importação por gasoduto, como é o caso da Bolívia, investimento em infraestrutura inferior à construção de dutovias e a confiabilidade quando comparado com outras fontes renováveis.
Essas características levaram ao aumento na demanda de GNL no País nos últimos anos, atrelado, em especial, ao seu uso para a geração de energia elétrica. Neste sentido, dois novos projetos de termelétricas vinculados a terminais de GNL entraram em operação em 2020 (CELSE, Porto de Sergipe I e Gás Natural Açu, GNA I), somando-se aos cerca de 17 projetos de terminais de GNL mapeados pela Empresa Planejamento Energético – EPE. Mais recentemente, os terminais de GNL também passaram a ser vistos no Brasil como uma alternativa para a monetização de gás do pré-sal e para fornecer ainda mais flexibilidade na oferta de gás no País, favorecendo a consolidação de Novo Mercado de Gás, como objetiva o PL. Nesse sentido, o projeto Marlim Azul, da Shell, pretende usar os gasodutos já instalados, em especial a rota 3, para escoar o gás do seu campo offshore para uma planta de liquefação associada a um terminal de GNL. Esta configuração permitirá a interiorização do gás em momentos de aumento de demanda, inclusive termoelétrica, e exportação em situações sazonais de baixa demanda pelo combustível.
Os terminais de GNL atuam como a porta de entrada para o GNL importado e uma alternativa para o desenvolvimento de projetos envolvendo a cabotagem e a comercialização do GNL em pequena escala (também chamado de “small scale LNG”). O small-scale LNG visa resolver a questão da ausência de demanda de gás no interior do País, decorrente da carência de oferta de gás de fontes confiáveis em tais localidades, em grande monta em razão da falta de cobertura da malha dutoviária nestas regiões.
Esses projetos possuem configurações diversas. Alguns envolvem embarcações menores e/ou barcaças, como é o caso do Projeto da CELBA em Barcarena; outros possibilitam logísticas modais integradas de GNL conteineirizado e são estruturados na integração dos transportes fluvial e rodoviário, como no caso do Projeto da Eneva, que consiste na liquefação do gás natural do campo de Azulão, no Amazonas, e o seu transporte por caminhões até Roraima, onde será regaseificado e utilizado como combustível para a geração de energia elétrica na UTE Jaguatirica II em Boa Vista.
Do ponto de vista econômico, a presença do GNL importado no mercado brasileiro serve de benchmark para os preços praticados no mercado internacional. É por identificar essa importância do GNL que o novo marco regulatório dá atenção especial aos terminais de GNL e, expressamente, os inclui dentre as infraestruturas que deverão ter seu acesso a terceiros garantido.
A proposta faz sentido, uma vez que os terminais são considerados elos essenciais da cadeia e podem ser necessários para equilibrar a malha de transporte. Em diversos países da Europa, os terminais de GNL, assim como a infraestrutura de estocagem, são coordenados em conjunto com a infraestrutura de transporte.
No entanto, é importante destacar que o acesso de terceiros aos terminais de GNL é assunto dos mais intrincados tanto do ponto de vista regulatório quanto técnico e comercial. Não por outro motivo, o marco regulatório ainda vigente (art. 45 da Lei 11.909) estabelece expressamente que os terminais de GNL não estão obrigados a permitir o acesso de terceiros. Contudo, o PL recém aprovado altera esta situação, assegurando, também de forma expressa, o acesso não discriminatório e negociado de terceiros interessados aos terminais de GNL. Possivelmente, o acesso de terceiros aos terminais de GNL será objeto de regulamentação pela ANP, caso o PL venha a ser sancionado pelo Presidente da República, de forma a mitigar as dificuldades regulatórias afetas a este assunto.
O acesso de terceiros aos terminais de GNL também encontra obstáculos na legislação tributária vigente. Diferente da maior parte das mercadorias, o gás tem natureza fungível e sua trajetória física no transporte por gasodutos não necessariamente corresponde às operações comerciais e aos fluxos contratuais. Além disso, cabe destacar a dificuldade do ponto de vista prático de comprar uma carga parcial de GNL, o que resulta na necessidade de integração e compras conjuntas entre os usuários do terminal ou realização de swaps entre eles. Hoje não há na legislação ou na regulamentação o tratamento fiscal específico, inclusive no que tange ao cumprimento de obrigações acessórias pelo Terminal e seus usuários.
Na seara aduaneira, um dos obstáculos é o descasamento temporal entre o recebimento da carga e o prazo previsto na regulamentação para emissão do documento de suporte relativo à perícia da carga a ser desembaraçada.
Atualmente é feita medição e descarga a bordo do navio importador, com a comunicação da Secretaria da Receita Federal do Brasil para disponibilidade e uso pelo Terminal antes do final do prazo de verificação das autoridades aduaneiras. Quando o operador do Terminal é o proprietário da carga, isso não é um problema. No entanto, se o proprietário da carga não for o operador do Terminal, terá que fazer a remessa da carga para o Terminal, o que não é possível antes da finalização da importação.
A conexão de diversos terminais à térmicas, que estão sujeitas a elevadas multas em caso de indisponibilidade, torna a definição de capacidade ociosa tema bem complexo. Da mesma forma, as dificuldades no âmbito tributário e regulatório na aquisição de carga compartimentada e cálculos de boil-off, dentre outros, demandam que esse aspecto específico do novo marco regulatório seja objeto de estudos mais aprofundados pelo setor e pelo órgão regulador para que possa ser devidamente regulamentado de forma a permitir que atinja o seu papel na competitividade do setor.
O mercado de GNL também pode se beneficiar de outros aspectos do novo marco regulatório que não foram especificamente pensados para o GNL, como é o caso da possibilidade de escolha dos consumidores dos seus fornecedores e a existência de uma cadeia integrada. A existência de um mercado mais competitivo, em que consumidores podem escolher os seus fornecedores e a existência de uma cadeia integrada de gás, possibilita que mais consumidores potencialmente escolham a utilização de gás natural para suas indústrias ou térmicas.
O GNL, por suas características intrínsecas, contribui e muito para o desenvolvimento desse mercado mais competitivo de gás. O GNL nada mais é do que gás natural liquefeito e, portanto, condensado, tornando mais econômico o seu transporte a longas distancias.
Assim, não apenas o GNL e os gasodutos virtuais servem para garantir a oferta de GNL em áreas que atualmente não são atendidas, como a flexibilidade de origem do GNL torna a migração de grandes consumidores para o gás mais segura, posto que o risco de falta de oferta é significantemente reduzido, se não eliminado.
Nesse sentido, consumidores poderiam eleger comprar gás oriundo de importações por GNL, independentemente de sua localização, afinal, os terminais de GNL nada mais são do que o ponto de entrada de gás na malha nacional.
Juliana Pizzolato Furtado Senna, Patricia de Albuquerque de Azevedo, Carolina do Rêgo Lopes Fonseca, Jessica Santos Antunes são advogados do Kincaid Mendes Vianna