Novo Mercado de Gás: a nova era do mercado de gás no Brasil, por Mariano Berkenwald e Gergely Molnár

Com a nova lei do gás, o Brasil adota um mercado de gás aberto, competitivo e voltado para o futuro

Shell’s liquefied natural gas (LNG) regasification terminal in Gibraltar 2018, switching from diesel-fuelled power generation to cleaner-burning natural gas.  It uses a newly commissioned 80-megawatt gas-fired power plant.  An inspector checks the gas pressure gauge of the evaporator.
Shell’s liquefied natural gas (LNG) regasification terminal in Gibraltar 2018, switching from diesel-fuelled power generation to cleaner-burning natural gas. It uses a newly commissioned 80-megawatt gas-fired power plant. An inspector checks the gas pressure gauge of the evaporator.

A nova Lei do Gás do Brasil estabelece as bases para um mercado de gás que estimula a concorrência entre os participantes e melhora a eficiência.

O programa de reforma do Novo Mercado de Gás deve aumentar a flexibilidade física dos sistemas de gás, permitindo que o gás seja entregue mais rapidamente e facilitando a integração de uma parcela maior de energias renováveis intermitentes no sistema de energia brasileiro.

No longo prazo, um mercado de gás aberto e competitivo pode se adaptar mais facilmente a um sistema multigás, que inclui gases de baixo carbono.

A pedido do governo brasileiro, a Agência Internacional de Energia tem fornecido consultoria técnica com base na experiência internacional para informar e moldar o programa de reforma do mercado de gás do país desde o seu primeiro dia.

Um mercado de gás aberto e competitivo pode melhorar a eficiência e auxiliar na recuperação econômica

A Nova Lei do Gás fornece o quadro jurídico para a transição de uma estrutura de mercado verticalmente integrada para uma liberalizada e competitiva, com base em quatro princípios fundamentais:

  • Unbundling/Desverticalização: Os operadores de redes de gás não podem ser controlados direta ou indiretamente por empresas envolvidas em outras atividades ao longo da cadeia de valor do gás, incluindo exploração, produção, importação ou comercialização.
  • Acesso a terceiros: Os participantes do mercado devem ter acesso concedido em uma base não discriminatória sob um regime regulado no caso de dutos de transporte, e um regime negociado no caso de instalações essenciais, como dutos de coleta, plantas de processamento e gás natural liquefeito (GNL) terminais de importação.
  • Sistemas de transporte de entrada e saída: Mudar do atual modelo de transporte de gás ponto a ponto para um regime de acesso à rede permitirá que os transportadores reservem as capacidades de entrada e saída de forma independente, aumentando a flexibilidade do sistema de gás.
  • Transparência: Os operadores da rede fornecem aos participantes do mercado transparência operacional, por meio da capacidade de transporte disponível e das tarifas relacionadas aos serviços de transporte.

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Um mercado de gás aberto e competitivo poderia beneficiar amplamente a economia do Brasil, assim como impulsionar sua recuperação da crise econômica global causada pela pandemia de Covid-19.

O Brasil está entre os países com os maiores preços do gás natural para o setor industrial; setor este que representou mais de 45% do consumo de gás do país em 2019.

Preços do gás natural para o setor industrial (2019)

*Preços na Argentina estimados pela IEA em base aos preços para indústria publicados pela Secretaria de Energia da Argentina, http://datos.minem.gob.ar/dataset/precios-de-gas-natural. Nota: Preços de gás incluem impostos. MBtu=1.000 British thermal units. Fonte: IEA (2020, todos os direitos reservados) World Energy Prices, MME (2020), Boletim Mensal de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural.  

Os altos preços do gás no Brasil estão principalmente atrelados aos mecanismos de fixação de preços embutidos nos contratos de venda.

Normalmente, estes estão vinculados aos derivados de petróleo, de modo a não refletirem necessariamente os fundamentos de oferta e demanda do mercado brasileiro de gás.

O aumento da concorrência no mercado atacadista e o estabelecimento de hubs de gás natural – onde ocorre a definição de preços efetiva e transparente, à medida que compradores e vendedores interagem para determinar os preços de mercado – podem reduzir os preços do gás industrial doméstico.

O Ministério da Economia do Brasil estima que os preços do gás doméstico podem cair 40% nos próximos anos, como resultado das reformas do mercado de gás.

Essa redução pode melhorar significativamente a competitividade internacional do setor industrial, que responde por um quinto do PIB do Brasil. Pode ainda aumentar o PIB industrial do país em 8,4%, de acordo com estimativas do governo.

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Compartilhar a experiência internacional é fator chave para o sucesso

As reformas do mercado de gás são complexas e demoradas, envolvendo muitas e distintas partes interessadas.

Embora as escolhas de design de mercado bem-sucedidas raramente sejam replicáveis de um país para outro, a experiência internacional pode ajudar a orientar os formuladores de políticas, a fim de que estes projetem soluções adaptadas às particularidades de seus países.

Recorrer à experiência internacional também é fundamental para criar consenso entre todos os envolvidos e garantir seus respectivos engajamentos – um componente extremamente importante para qualquer processo de reforma bem-sucedido.

O Brasil aderiu à IEA como país associado em outubro de 2017, em linha com a política da IEA de “abrir as portas” às principais economias emergentes. Desde então, a colaboração se expandiu para uma ampla gama de tópicos.

Isso inclui não apenas a eficiência energética e a inovação em energias limpas, mas também os mercados de eletricidade e gás natural – áreas que estão passando por reformas consideráveis no Brasil.

Desde 2018, a IEA tem fornecido consultoria técnica para o processo de reforma do mercado de gás natural no Brasil, facilitando o acesso às melhores práticas internacionais.

Esta troca de experiência internacional tem informado políticas cruciais e discussões regulatórias, bem como a implementação de reformas de mercado. Graças ao apoio do Prosperity Fund do Reino Unido, a IEA liderou um diálogo técnico de vários anos e um processo de revisão por pares.

Isso envolveu mais de 25 especialistas em gás natural, representando governos, academia e setores privados de dez países-membros da IEA, bem como uma ampla variedade de partes brasileiras interessadas.

Em 2018, a IEA publicou o relatório Rumo a um mercado de gás natural competitivo no Brasil, seguido por um white paperImplementing Gas Market Reform in Brazil: Insights from European experience”,a fim de divulgar ainda mais as melhores práticas internacionais.

Os princípios fundamentais formulados nesses documentos – desverticalização, acesso não-discriminatório de terceiros, sistema de entrada-saída e transparência – estão refletidos na Nova Lei do Gás adotada pelo Brasil. Esses princípios desempenharão um papel fundamental na transição para um mercado de gás mais aberto e competitivo.

Novo Mercado de Gás: construindo um novo mercado de gás baseado em uma nova lei

Os princípios formulados na Nova Lei do Gás terão de ser traduzidos num quadro regulamentar detalhado e que defina as regras comuns do regime de operação diário do Novo Mercado do Gás, incluindo serviços de rede de gás, o delineamento de hubs e fiscalização do mercado.

A criação de um mercado atacadista que funcione bem exige regras comuns, conhecidas como códigos de rede, que regulam o acesso de terceiros ao sistema de gás e aos serviços prestados pelas empresas de transporte.

Por exemplo, os códigos e diretrizes de rede europeus incluem regras para: alocação de capacidade, gerenciamento de congestionamento, estabelecimento de tarifas, equilíbrio de serviços, interoperabilidade, transparência e troca de dados.

O desenvolvimento dessas regras deve ser conduzido pela entidade reguladora, em estreita cooperação com os operadores da rede de transporte desagregada e os gestores da área de mercado.

 Códigos e diretrizes das redes europeias

Fonte: Análise da IEA (todos os direitos reservados), baseada em ENTSOG (2020), Network Codes and Guidelines.

Juntamente com os códigos de rede, o delineamento de hubs de comercialização terá um papel vital no desenvolvimento do mercado nos próximos anos.

Para garantir que os volumes negociados e a liquidez aumentem, será crucial definir claramente as regras de acesso ao hub, bem como designar uma operadora de hub e os serviços que o hub oferece, juntamente com a transferência de titularidade.

Uma operadora pode aumentar a flexibilidade de curto prazo e a firmeza física do hub, fornecendo uma variedade de serviços comerciais aos participantes do mercado.

Será também essencial estabelecer o quadro jurídico e institucional de fiscalização do mercado – o monitoramento do mercado atacadista de gás a fim de detectar e prevenir manipulações.

A vigilância de mercado é particularmente importante nas fases iniciais do desenvolvimento do hub, quando a liquidez ainda é baixa e o risco de manipulação do mercado por um player dominante é alto.

A supervisão do mercado e a detecção de comportamentos anticompetitivos por uma instituição independente também podem desempenhar um papel importante na construção da confiança entre os participantes.

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Um Novo Mercado de Gás pode auxiliar nos esforços de descarbonização do Brasil

Além de estimular a competição entre os participantes do mercado e melhorar a eficiência, espera-se que o programa de reforma do Novo Mercado de Gás facilite a integração de uma parcela maior de energias renováveis intermitentes no sistema energético brasileiro.

Aumentar a flexibilidade e a capacidade de entrega de curto prazo do sistema de gás permite que ativos de geração de energia a gás forneçam capacidade de backup de resposta rápida, a fim de equilibrar fontes de energia renováveis intermitentes, como eólica e solar, que estão rapidamente se tornando uma parte importante da matriz de geração elétrica brasileira.

De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia 2029 (PDE), a participação das energias renováveis intermitentes na geração de eletricidade do país deve ser aproximadamente de 20% até 2030.

A geração a gás também deve desempenhar um papel importante no aumento da resiliência climática das hidrelétricas brasileiras sistema de energia, uma vez que a variabilidade dos influxos hidrológicos deverá aumentar nas próximas décadas.

A integração de energias renováveis em combinação com a geração a gás reduzirá a dependência de combustíveis fósseis com maior intensidade de carbono, como carvão e derivados de petróleo.

Ainda de acordo com o PDE, estima-se- que a capacidade de geração a carvão e petróleo reduza em mais de 85% até 2030.

Matriz elétrica brasileira segundo o Plano Decenal de Energia 2030

Nota: energias renováveis intermitentes, incluindo pequenas hidrelétricas, biomassa, solar e eólica. Fonte: Análises da IEA (todos os direitos reservados), baseadas em MME/EPE (2019), Plano Decenal de Expansão de Energia 2029.

Comparada à rigidez comercial e operacional de um modelo verticalmente integrado, a estrutura regulatória que sustenta um mercado de gás aberto e competitivo facilitará a inclusão de vários gases de baixo carbono – como biometano, hidrogênio e metano sintético – junto ao sistema de gás, bem como permitir a negociação destes.

A integração efetiva de gases com baixo teor de carbono exigiria ainda o apoio a esquemas e regras de mercado sobre a aplicação não discriminatória de limites de mistura, interoperabilidade, intercâmbio aprimorado de dados e comércio de gás neutro em qualidade.

Essa perspectiva de longo prazo deve ser levada em consideração no desenvolvimento do quadro regulatório.

Esta colaboração de sucesso entre a IEA e o Brasil se estende muito além do Novo Mercado de Gás do Brasil: tornou-se um modelo para vários projetos, incluindo a modernização do setor elétrico, precificação de carbono, bem como projetos semelhantes com outras importantes economias emergentes.

A IEA permanece firmemente comprometida a apoiar o Ministério de Minas e Energia do Brasil, fornecendo suporte aos seus projetos ambiciosos, facilitando o acesso à experiência internacional e às melhores práticas, e aproveitando a experiência e liderança da IEA em todos os combustíveis e tecnologias, com o intuito de que o Brasil alcance seus objetivos para um futuro energético sustentável e seguro.

Mariano Berkenwald e Gergely Molnár são, respectivamente, coordenador do Programa para América Latina e Analista de Gás da Agência Internacional de Energia (IEA, sigla em inglês)

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