Nos contratos de energia, principalmente aqueles relacionados à comercialização de commodity num mercado interconectado, a alocação das flexibilidades envolvidas é um dos pontos mais relevantes, que direciona quem e como se retira valor daquele contrato.
Uma destas flexibilidades diz respeito à destinação que o comprador pode dar à energia e ao gás natural adquiridos.
Por exemplo, se a aquisição foi feita para utilizar em determinada unidade consumidora, mas esta reduziu seu consumo e não utilizou tudo, seria possível a revenda pelo comprador no mercado? Há flexibilidade para revenda no mercado secundário a terceiros?
Essas cláusulas que restringem a destinação nos contratos de energia elétrica e de gás natural são internacionalmente conhecidas como “destination clauses”.
Para explicar o que são cláusulas de destino e o contexto por trás de sua proibição, voltemos brevemente à Europa no início deste século.
Os mercados europeus de gás foram desenvolvidos com base em contratos de fornecimento de gás com take-or-pay de longo prazo, que atendiam determinada área de mercado geográfico do comprador em regime de exclusividade monopolista.
Esses contratos de longo prazo – chamados de Contratos Legados1 – eram celebrados por compradores dentro da UE com fornecedores russos, noruegueses e nigerianos. Em 2000, 90% das importações de gás do continente europeu eram feitas por meio desse tipo de contrato.
Até os anos 90, esses contratos determinavam “cláusulas de destino” que limitavam a venda do gás a uma área geográfica específica, permitindo preços e condições diferentes para cada comprador, sem troca entre eles.
Essas cláusulas enfrentaram forte oposição da Comissão de Energia da UE. Na virada do século, o grupo reivindicou a remoção obrigatória de todos os contratos vigentes, como forma de se proteger da ascensão do monopólio russo sobre o gás da região europeia.
A vedação à cláusula de destino nos contratos de compra e venda de gás, portanto, tem uma forte vinculação com uma preocupação antitruste e geopolítica de dependência do gás russo.
No esforço de tropicalização das melhores práticas do velho mundo, o Brasil também optou por essa proibição.
Em excerto literal, desde 2019, a ANP determina que é vedada “a utilização de cláusula de restrição de destino nos contratos de compra e venda de gás natural, podendo o adquirente comercializar o produto para qualquer interessado, respeitada a regulamentação vigente”
O órgão teve a intenção de criar um driver parecido para o desenvolvimento concorrencial local.
Mais especificamente, a Agência visou coibir a utilização de restrições de destino pela Petrobras nos contratos termelétricos e industriais – não apenas para estimular um mercado secundário de revenda, mas, também, para garantir que novos comercializadores não tivessem sua atuação restringida por produtores e originadores.
No entanto, as restrições não são limitadas à indústria do gás. Em 2019, a ANP se ocupou em vedar sua utilização nos contratos de fornecimento de derivados (gasolina, óleo diesel rodoviário e marítimo, combustível de aviação, GLP etc.) – sinalizando que a preocupação do regulador com amarras competitivas também se estende a mercados mais concorrencialmente diversos que o do gás.
No setor elétrico, não existe vedação regulatória semelhante para contratos de compra e venda de energia. Não é incomum contratos que vinculem o exercício das flexibilidades ao consumo do comprador (“registro contra consumo” ou “flex contra consumo”).
Não necessariamente as cláusulas de destino são ruins. Permiti-las ou não é um trade-off importante em um contexto, no qual possam ter um papel relevante para gerar pressão competitiva e gerar alguma contestação ao mercado monopolizado.
No cenário competitivo, a cláusula de destino pode reduzir a flexibilidade do comprador, oferecendo um preço menor, sem a necessidade de justificar o custo de mantê-la. Em outros termos, flexibilidade tem preço.
Nesse contexto, pode não fazer sentido a restrição, já que os compradores teriam alternativas de suprimento.
Uma das preocupações em relação a essas cláusulas, contudo, diz respeito a arranjos de compartilhamento de infraestrutura. Ainda não é o caso no setor elétrico, dada a inviabilidade de estocagem em larga escala, mas, para o mercado de gás, cláusulas de destinação e exclusividade podem representar desafios a arranjos multi-usuários.
Lívia Amorim é sócia da área de Energia, Infraestrutura e Projetos do Veirano Advogados.
Tito Rosa é sócio da área de Energia, Infraestrutura e Projetos do Veirano Advogados.
Referências
1 No Brasil, tal terminologia é adotada em contextos para se referir, por exemplo, aos contratos de longo prazo de contratação de transporte de gás natural firmados pela Petrobras com suas subsidiárias transportadoras e para se referir aos contratos de compra e venda de energia no Ambiente de Contratação Regulada (“ACR”) firmados com as distribuidoras.