Uma narrativa não amparada na realidade nem no arcabouço jurídico-regulatório vem sendo recorrentemente usada para tentar descredibilizar um gasoduto de distribuição de gás natural construído pela Comgás e que é objeto da Consulta Pública 010/2023 na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
O enredo, que consta em estudo produzido pelo FGV-Ceri sob encomenda – segundo a imprensa – da Associação Brasileira das Transportadoras de Gás Natural (ATGás), vem batendo na tecla de que o gasoduto de distribuição Subida da Serra se configuraria como um exemplo de by-pass sobre o sistema de transporte e que, uma vez em operação, poderia se configurar como um “precedente” que, segundo essa tese, poderia ser replicado em outras iniciativas no Brasil, supostamente comprometendo o sistema integrado de transporte do país.
Nada mais falso.
Simplesmente porque não há precedente algum e o caso não se configura como bypass.
Com base em situação jurídica semelhante, existem diversos exemplos de clientes ou de concessionárias que recebem a molécula de gás diretamente de fontes de suprimento, como unidades de processamento de gás natural (UPGN) ou terminais de importação de gás natural liquefeito (GNL) em operação no Brasil, sem que esse gás passe pela rede de transporte ou que seja necessário o pagamento de uma suposta taxa de transporte correspondente.
Um exemplo é a Usina Termoelétrica Porto de Sergipe I – a maior das térmicas movidas a gás natural em operação no país. Inaugurada em agosto de 2020, a usina situada em Barra dos Coqueiros, em Sergipe, hoje pertencente à Eneva, está conectada diretamente ao terminal de gás natural da própria empresa, com consumo estimado em 6 milhões de metros cúbicos diários e não paga um centavo de tarifa de transporte.
Não é exceção. Outro exemplo está no Sudeste, mais exatamente no Porto de Açu, litoral norte do estado do Rio de Janeiro. A maior usina da região foi inaugurada em setembro de 2021, a UTE GNA I, uma joint venture da Prumo Logística com a BP, Siemens e SPIC Brasil, é ligada a um terminal de GNL, que abastece o complexo termelétrico, com mais uma usina em construção – a GNA II. Somadas, ambas podem receber 11,5 milhões de metros cúbicos diários.
Alguma delas está conectada ao sistema de transporte ou paga tarifa de transporte? A resposta é um contundente não.
Quer saber o porquê? A resposta foi dada pela própria ANP, segundo a qual os gasodutos de transporte não constituem elo essencial ou obrigatório da cadeia – portanto, as conexões foram aprovadas e construídas de forma justa e lícita.
País afora, há muitos outros casos
No Maranhão, o Complexo Parnaíba, da Eneva, mantém cinco usinas que consomem um volume de até 8,4 milhões de metros cúbicos diários – todas conectadas diretamente à produção onshore sem pagar qualquer tarifa de transporte.
No Amazonas, também com conexão diretamente na produção onshore, o Azulão II, investimento da mesma Eneva em construção, é mais um exemplo de termelétrica sem qualquer pagamento de tarifa de transporte sobre os 4,5 milhões de metros cúbicos diários estimados de consumo.
Ainda na região Norte, a UTE Barcarena, da New Fortress Energy (NFE), está em construção no estado do Pará, após a conclusão das obras de instalação do terminal de GNL à qual será diretamente conectada. O consumo pode chegar a 3 milhões de metros cúbicos diários, e sem tarifa de transporte.
Voltando à Região Sudeste, a termelétrica Marlim Azul, um projeto da gigante global de óleo e gás Shell e do Grupo Pátria, prestes a entrar em operação em Macaé (RJ), terá consumo de até 4,5 milhões de metros cúbicos diários, e, assim como as demais, não está conectada a um só duto de transporte e, por isso, não paga tarifa de transporte.
Todos esses projetos citados totalizam um potencial de movimentação de mais de 35 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia de consumo, quase metade do mercado brasileiro de gás, sem passar pela malha de transporte e sem pagar taxa de transporte. Em nenhum desses casos se viu qualquer questionamento de by-pass pelos transportadores nem qualquer limitação de volumes ou cobrança de taxa de transporte pela ANP.
E o volume pode subir com outro projeto, o Portocem, no Ceará, controlado pela Ceiba Energy, com volume que pode alcançar 9,5 milhões de metros cúbicos diários e ainda em definição se haverá conexão direta no terminal de GNL.
Outros exemplos que podem ser mencionados
Recentes contratos de suprimento de gás natural onshore firmados por distribuidoras da região Nordeste vêm sendo saudados como símbolos da abertura do mercado brasileiro de gás, como o da Bahiagás, na Bahia, com a Alvopetro; e pela Algás, em Alagoas, com a Origem Energia.
Em ambos os casos, o gás é entregue pelos supridores no city gate da distribuidora, sem passar pelo sistema de transporte e, nesses casos, sem pagar alguma taxa de transporte.
Notem que a cobrança de uma taxa indevida de transporte provavelmente restringiria a diversificação da oferta de gás na região, celebrada até mesmo por representantes da ANP em eventos setoriais.
Por isso, parece um tanto discriminatório que se queira impor restrições ao gás que a Comgás receberá pelo seu ponto de entrega (o chamado city gate) em Cubatão, de um terminal de GNL que é fruto de um investimento de R$ 1 bilhão e está prestes a ser inaugurado na Baixada Santista, ou, ainda mais grave, cobrar uma taxa de transporte sobre este gás que não passará por dutos de transporte.
Ora, após a entrega ser realizada pelo terminal no city gate, o gás natural passa para a custódia do sistema de distribuição.
Cobrança arbitrária prejudica a indústria
Duas perguntas, portanto, não querem calar:
- Por que em tantos outros estados da federação não se cobra tarifa de transporte nesses projetos mencionados (até mesmo porque não houve a necessidade de um sistema de transporte) e, no caso do gasoduto Subida da Serra, reivindica-se um tratamento diferente com o estado de São Paulo?
- Se não passa pela rede de transporte, por que pagar uma taxa de transporte? Seria esse um “pedágio” a ser pago pelo consumidor paulista, principalmente a indústria?
O gasoduto Subida da Serra se inicia após o ponto de entrega (city gate) e irá movimentar gás natural dentro da própria rede da Comgás até seus usuários. Seria totalmente inapropriado instalar um medidor para cobrar tarifa de transporte sobre o gás movimentado em um ativo dessa concessionária de distribuição, uma vez que o gasoduto foi aprovado dentro do processo de revisão tarifária da companhia e já vem sendo pago pelos seus consumidores.
Seria um imenso absurdo, nesse caso, impor um tratamento diferenciado à Comgás em relação ao resto do país e prejudicial a seus clientes.
A alegação de by-pass do transporte é absurda e ilegítima. O Subida da Serra é um projeto aprovado há quatro anos, que passou por consulta pública e foi amplamente discutido, sem nenhum questionamento à época.
Pretender impor, na marra, a cobrança de uma taxa arbitrária de transporte, além de prejudicar diretamente os consumidores, especialmente as grandes indústrias que consomem gás intensivamente, representaria uma medida discriminatória contra o estado de São Paulo, maior consumidor de energia do país.
Além disso, seria um grande inibidor ao desenvolvimento do mercado livre de gás no estado, ao taxar a única fonte alternativa ao gás da Petrobras.
Não é plausível que as indústrias paulistas paguem um gás mais caro por conta de uma medida que seria claramente discriminatória em relação ao resto do país.
São Paulo precisa de energia em condições competitivas. O estado, e sua população, não podem pagar pela inação de transportadoras de gás natural que deveriam ter investido na infraestrutura de ativos hoje depreciados, e que, em vez disso, preferem apenas arrecadar receitas e distribuir dividendos para acionistas internacionais pouco ou nada comprometidos com o desenvolvimento da infraestrutura brasileira.
A indústria paulista não pode ser discriminada com medidas que só servem para encarecer o custo dos produtos que chegam aos consumidores finais.
O que se espera, no desfecho da Consulta Pública 010/2023, é um acordo entre ANP e Arsesp que reconheça o Subida da Serra como gasoduto de distribuição que é e sempre foi, sem limitações de acesso a fontes de suprimento e sem cobranças de taxas e “pedágios” descabidos.
Somente dessa maneira veremos o fortalecimento de um ambiente de plena segurança jurídica e pela abertura do mercado – condição fundamental para a tão desejada competição e o aumento dos investimentos no mercado de gás natural.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
* Carlos Cavalcanti é vice-presidente da Fiesp e ex-diretor titular do Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (2008-2021)