Biocombustíveis

Mudanças climáticas desafiam produção de biocombustíveis

Especialistas observam que variação nos padrões climáticos, como as fortes chuvas que afetam o RS, gera incertezas que comprometem segurança energética

Intensificação dos efeitos das mudanças climáticas desafiam produção de biocombustíveis no Brasil. Na imagem: Sobrevoo de área inundada com estrada encoberta pelas águas das fortes chuvas em Canoas (RS), em 5-5-2024 (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Sobrevoo em Canoas, no Rio Grande do Sul, tomada pela água devido a fortes chuvas (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

RIO – A intensificação dos efeitos da mudança do clima começa a impor desafios significativos à produção de biocombustíveis no Brasil, afetando diretamente a disponibilidade de matérias-primas como soja e cana-de-açúcar, essenciais para a produção de biodiesel e etanol, avaliam especialistas consultados pela agência epbr.

Analistas de mercado observam que a variação nos padrões climáticos, incluindo secas e inundações – como a que afeta agora o Rio Grande do Sul –, tem gerado incertezas que comprometem a segurança energética e a estabilidade do setor de biocombustíveis.

“Existe uma tendência que essas mudanças climáticas tenham efeitos mais relacionados às incertezas de segurança energética brasileira. O quão certo o mercado está em relação à disponibilidade de biocombustíveis”, explica Bruno Cordeiro, analista de petróleo da StoneX.

Recentemente a consultoria publicou um relatório onde reduziu a previsão para a safra de soja no Rio Grande do Sul em 3 milhões de toneladas.

Segundo Cordeiro, haverá uma “possível menor oferta de óleo de soja no país” e “uma tendência de incerteza, considerado que é a matéria prima responsável pela produção de 80 a 95% do biodiesel brasileiro”.

“Em anos de adversidade climática temos o risco de desabastecimento de biocombustíveis”, afirma.

A consultoria alerta que essa imprevisibilidade no fornecimento de biocombustíveis pode até mesmo deslocar a demanda para combustíveis fósseis.

“Veremos os fósseis se tornarem um parâmetro de segurança em última instância”, avalia.

O cenário de incertezas, na avaliação do especialista, aumenta com a combinação de maior incidência de eventos climáticos severos e o aumento da demanda por biocombustíveis, estimulado por políticas públicas como o Mover e Combustível do Futuro. Além da adoção de novos, como o diesel verde (HVO) e os combustíveis sustentáveis de aviação (SAF).

Para Cordeiro, à medida que a dependência do mercado de energia em relação às cadeias agrícolas aumenta, a sensibilidade às condições climáticas também tende a crescer.

Indústria de etanol investe em adaptação

Luciano Rodrigues, diretor de inteligência setorial da Unica – associação que representa produtores de etanol e bioeletricidade do Centro-Sul do país – conta que o setor já vem adotando medidas de resiliência às mudanças climáticas para manter a produção e a capacidade de abastecimento do mercado de biocombustíveis.

Uma delas é a introdução de variedades de cana-de-açúcar mais resistentes e produtivas, desenvolvidas após os anos 2000.

“Em 2019, tínhamos 9% da área com variedades modernas. Hoje, são 36%”, aponta Rodrigues.

Segundo o diretor, as variedades mais modernas têm um ganho médio de produtividade em torno de 15% a 20% em comparação com as antigas, aumentando a resiliência das plantações às condições climáticas adversas e à incidência de pragas.

Além disso, a diversificação da produção com a expansão do etanol de milho, que já representa 20% da produção total, tem ajudado a mitigar os riscos na oferta do substituto da gasolina.

“Há cinco anos, o etanol de milho era zero. Nós vamos atingir 7 ,5 bilhões de litros este ano, 20% da produção de etanol no Brasil”, destaca Rodrigues.

Entre as vantagens do milho está a capacidade de armazenamento, que permite uma gestão mais eficiente, tornando a produção de etanol menos vulnerável às variações sazonais e climáticas.

Outra estratégia é a expansão da produção de cana para novas fronteiras agrícolas.

“Antes a cana era muito concentrada, Paraná, São Paulo, alguma coisa no Triângulo Mineiro. Nos últimos dez, quinze anos, cresceu Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, mesmo em Minas avançou bastante”.

Contudo, Rodrigues destaca que a expansão agrícola não significa novos desmatamentos – uma das principais causas de emissão de gases do efeito estufa no Brasil.

“Em 2018, incluímos nas regras do RenovaBio um compromisso de desmatamento zero, legal e ilegal. O desmatamento legal não é aceito na política nacional de biocombustíveis. Hoje, mais de 90% da oferta de etanol é certificada, e as plantas precisam monitorar as áreas que são utilizadas para plantio de milho, para plantio de cana, com imagem de satélite”.

Impactos no cultivo da soja

Pedro Moré Garcia, coordenador de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), observa que variações de temperatura e precipitação têm efeitos diretos na produtividade da soja.

“Temperaturas muito altas podem afetar o florescimento, enquanto temperaturas muito baixas podem atrasar a maturação e reduzir a qualidade dos grãos”.

Essas alterações climáticas impactam a oferta de soja, afetando a produção de biodiesel.

“Os eventos recentes no Rio Grande do Sul são a prova disso. No ano passado, [o estado] vivenciou um cenário oposto, com um período intenso de seca. Também por conta de eventos climáticos não esperados, nos primeiros meses de 2024, foi experienciada uma queda nas estimativas de safra de soja no Mato Grosso, decorrente de, além de questões econômicas, fortes secas”.

Garcia defende incentivos governamentais para fortalecer o setor de biocombustíveis, alinhando as políticas de descarbonização com os pactos globais de mudanças climáticas.

“Uma vez que a produção agrícola é afetada, há reflexos no mercado de biocombustíveis frente à dinâmica de oferta e demanda. Incentivos para a manutenção da produção deste tipo de combustível são fundamentais quando pensamos em descarbonização e ações em prol da redução de emissões”.

O coordenador da Abiove também destacou a importância da Moratória da Soja e do CSA Cerrado, programas que monitoram e combatem o desmatamento na Amazônia e no Cerrado, garantindo práticas agrícolas sustentáveis das empresas associadas.

“Os sistemas das empresas são capazes de identificar as áreas com plantio de soja com incidência de desmatamento ilegal por meio do cruzamento dos mapas com as informações de Autorização de Supressão de Vegetação (ASV). Uma vez identificada uma área de soja que não possui a referida ASV, as empresas não originam”.

Clima extremo

Marina Almeida, meteorologista e analista técnica do Instituto E+, destaca que as mudanças climáticas já são uma realidade com impactos diretos na produtividade agrícola.

“Prevemos mais chuvas no Norte e Sul e menos precipitação no Nordeste, o que afeta a disponibilidade hídrica e, consequentemente, a irrigação e a produtividade das culturas”.

No caso da Região Centro-Sul, que concentra boa parte da produção nacional de matérias-primas para biocombustíveis, a previsão varia de acordo com a proximidade com o Nordeste e o Sul.

Almeida enfatiza a importância de políticas públicas focadas na mitigação e adaptação às mudanças climáticas, promovendo biocombustíveis como alternativa aos combustíveis fósseis.

“Investir em biocombustível, promover políticas públicas para o aumento de biocombustíveis são medidas muito importante de mitigação. Porque quando usamos biocombustível, diminuímos a utilização de combustível fóssil”.

Mas ela também alerta para a necessidade de um planejamento contínuo e adaptação, evitando que eventos climáticos extremos, como no Rio Grande do Sul, sejam esquecidos e deixem de influenciar políticas públicas eficazes.

“Não é uma coisa para a gente pensar daqui 20 anos, é uma coisa para a gente pensar agora. E reconhecer nas políticas públicas a importância das mudanças climáticas”, afirma.

“É importante considerar nos estudos de expansão, de operação de biocombustíveis, essas variações de mudança climática, para a gente ter plano de adaptação, para a gente ter o que fazer em casos extremos”, completa Almeida.

O coordenador do Instituto E+, Clauber Leite, chama atenção para a recorrência maior de eventos extremos, e que o mundo caminha para os cenários mais catastróficos previstos pelo painel intergovernamental global que trata do clima (IPCC).

“No IPCC, se pegam todos os modelos e se usa a média. Os que estão nos extremos são descartados, e se usa aquilo que está na média. Mas estamos vendo que aqueles que foram descartados são os que estão melhor respondendo à realidade que a gente está vendo hoje”.