Energia

Indústria de SP não pode ser discriminada a pagar gás natural mais caro

Defender a aplicação de uma taxa de transporte em um gasoduto que sempre foi de distribuição só serve para onerar a indústria e os consumidores, avalia Carlos Cavalcanti

Na imagem: Gasoduto Subida da Serra, da Comgás. Rede de dutos para transporte de gás natural em área íngreme próxima a centro urbano paulista (Foto: Sima/SP)
Gasoduto Subida da Serra, da Comgás (Foto: Sima/SP)

Quem quer um gás natural mais caro para a indústria de São Paulo?

A pergunta é pertinente diante de uma das muitas teses absurdas no debate travado sobre o Subida da Serra, como vem sendo chamado o gasoduto de distribuição de gás natural do estado de São Paulo construído pela concessionária Comgás para reforçar a infraestrutura de gás canalizado entre a Baixada Santista e o Planalto Paulista.

Uma dessas narrativas criativas é a do suposto malefício que essa infraestrutura causaria para um modelo integrado da malha de transporte de gás. A teoria, defendida recentemente por um instituto voltado para o setor elétrico, tem sido usada como instrumento de pressão para que o gasoduto de distribuição da Comgás seja classificado como aquilo que definitivamente não é: um “gasoduto de transporte”.

Na prática, o que não se fala é que o Brasil já vive uma efetiva desintegração do sistema de transporte de gás natural. E isso não tem qualquer relação com o projeto do gasoduto paulista – é fruto da falta de investimentos das transportadoras.

Duas perguntas se fazem obrigatórias:

  • Que “sistema integrado de transporte de gás” é esse que não atende às necessidades básicas do mercado?
  • A quem interessa sustentar uma narrativa de um “sistema integrado de transporte” para um sistema claramente limitado em alcance e disponibilidade de infraestrutura?

Este mesmo instituto, em recente artigo, afirmou que um suposto by pass (térmicas ligadas diretamente a fontes de suprimento, sem passar pelo sistema de transporte de gás) seria promovido pelo Subida da Serra, aumentando as tarifas pagas pelo transporte de gás em outros estados.

Ora, tais representantes do setor elétrico que se dizem “defensores” dos consumidores de gás poderiam ter a honestidade intelectual de lembrar dos quase 40 milhões de metros cúbicos de gás natural/dia destinados a usinas termelétricas (UTEs) em outros estados que não passam pelo sistema de transporte, não pagam tarifa de transporte e nem qualquer “taxa” de transporte.

Não seriam então estes casos de by pass no sistema de transporte, onerando os demais consumidores de gás natural que pagam a tarifa de transporte?

Para dar uma luz no assunto, vamos relembrar todos esses projetos

1) UTE Porto de Sergipe I (Barra dos Coqueiros, Sergipe), em operação: com consumo estimado em 6 milhões de metros cúbicos diários de gás natural, a maior das usinas termelétricas movidas a gás em operação no país, hoje pertencente à Eneva, está conectada diretamente ao terminal de gás natural liquefeito (GNL) da própria empresa, sem pagar um centavo de tarifa de transporte;

2) UTE GNA I e UTE GNA II (Porto de Açu, Rio de Janeiro), em operação e em construção, respectivamente: a UTE GNA I é ligada a um terminal de GNL, que abastece aquilo que será um complexo termelétrico com mais uma usina em construção, a GNA II, resultado de uma joint venture da Prumo Logística com a BP, Siemens e SPIC Brasil. Somadas, ambas usinas têm capacidade de consumir 11,5 milhões de m³ diários. Nenhuma delas paga tarifa de transporte de gás para a transportadora do Sudeste;

3) Complexo Parnaíba (Santo Antônio dos Lopes, Maranhão), em operação: são cinco usinas termelétricas, todas da Eneva, que consomem um volume de até 8,4 milhões de m³ diários – todas conectadas diretamente à produção onshore sem pagar qualquer tarifa de transporte;

4) UTE Azulão II (Silves, Amazonas), em construção: o investimento da Eneva tem consumo estimado de 4,5 milhões de metros cúbicos diários. É outro exemplo de termelétrica concebido sem qualquer pagamento de tarifa de transporte;

5) UTE Novo Tempo Barcarena (Barcarena, Pará), em construção: usina da New Fortress Energy decorrente do terminal de GNL recém-inaugurado na região, com potencial de consumo de até 3 milhões de m³ diários, e sem previsão de pagar tarifa de transporte;

6) UTE Marlim Azul (Macaé, Rio de Janeiro), em construção: consumo de até 4,5 milhões de m³ diários, o investimento da Shell e do Grupo Pátria não está conectado a um duto de transporte e não paga tarifa de transporte nem taxa de transporte para a transportadora do Sudeste.

Outros dois casos emblemáticos são os contratos de suprimento de gás natural onshore firmados por duas distribuidoras de gás canalizado no Nordeste: o da Bahiagás, na Bahia, com a Alvopetro; e o da Algás, em Alagoas, com a Origem Energia.

Nas duas situações, o gás é entregue pelos supridores no city-gate da distribuidora, sem passar pelo sistema de transporte e, nesses casos, sem pagar qualquer taxa de transporte.

Reparem que ambos os projetos estão no Nordeste e fazem parte do contexto aclamado por muitos como um exemplo bem-sucedido da abertura do mercado brasileiro de gás, inclusive em falas públicas elogiosas de representantes da própria Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Ainda no segmento da distribuição, o já citado terminal de GNL de Barcarena também terá conexão direta com a Gás do Pará, conforme fica claro no site da concessionária.

Em resumo: todos os projetos enumerados são ativos e projetos que não passam pela malha de transporte e, portanto, não devem pagar taxa de transporte. Todos aprovados pela ANP.

Nenhum deles teve questionamento de by-pass pelos transportadores nem sofreu qualquer limitação de volumes ou cobrança de taxa de transporte pela ANP. Todas essas conexões foram aprovadas e construídas de forma lícita, importante que se diga, exatamente porque a ANP não considera que gasodutos de transporte se constituam como elo essencial ou obrigatório da cadeia do gás.

Cobrança indevida

Portanto, parece uma tese pouco inteligente defender a imposição de uma cobrança de tarifa de transporte sobre uma molécula que não seja movimentada por dutos de transporte. Isso só iria onerar o consumidor. Logo, a pergunta que não quer calar: por que cobrar taxa de transporte em São Paulo enquanto não se cobra em outros estados do país?

Dito isso, vale recordar que o investimento do Subida da Serra já vem sendo pago pelo consumidor paulista, e foi aprovado em 2019 em processo legítimo de revisão tarifária da Comgás, pelo regulador competente, a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp).

Este processo incluiu consulta pública e audiência pública, sem nenhum questionamento à época, e inclusive com a anuência da indústria paulista, que via no investimento uma possibilidade de ter acesso a um gás mais competitivo.

Sob o aspecto legal, o gasoduto de distribuição do estado de São Paulo construído pela concessionária local está inteiramente contido nos seus limites regulatórios, integrando a rede que se inicia após o city-gate da Comgás em Cubatão. As características técnicas do gasoduto são similares a de muitos outros projetos estruturantes existentes na rede de distribuição paulista e em outras concessionárias.

Ainda mais esdrúxula é a tese de que esse gasoduto supostamente poderia materializar uma “ilha do gás” em São Paulo. Como assim? Noventa por cento do consumo da Comgás provém de um contrato com a Petrobras, que segue dominando algo próximo de 80% da oferta nacional de gás natural no Brasil. E esse contrato, firmado em 2023, tem vigência de 11 anos! Que “ilha do gás” é essa?

Todas essas informações precisam ser cabalmente consideradas no processo em curso na ANP que avalia a proposta de harmonização de entendimento com a Arsesp em relação ao gasoduto paulista Subida da Serra. Os termos propostos passaram por consulta e audiência públicas, com diversas contribuições.

Seja qual for o resultado, é obrigatório afirmar que, diante de todos os exemplos aqui enumerados, seria inaceitável que São Paulo venha a ser tratado de forma discriminatória em relação a outros estados.

Se projetos no Rio de Janeiro, Sergipe, Amazonas, Bahia, Maranhão, Pernambuco, Alagoas e Pará não precisam pagar taxa de transporte de gás, por que o estado de São Paulo seria tratado de forma diferente? Por que estabelecer uma discriminação em relação ao consumidor paulista, que é quem paga essa conta?

O que interessa a todos é gás competitivo, reduzindo privilégios que são absolutamente desnecessários e injustificáveis para todo o Brasil.

A cobrança de uma eventual taxa de transporte sobre esse ativo do estado de São Paulo, além de discricionária, iria ao arrepio do que prevê a Lei 14.134, a Nova Lei do Gás.

Lembremos ainda que, em seu artigo 7, a Nova Lei do Gás, claramente preserva a classificação de gasodutos que estejam em implantação ou em operação na data de sua publicação, ou seja, um dia depois da data de sanção (em 8 de abril de 2021). É o caso óbvio do Subida da Serra.

Tamanho retrocesso teria como resultado a instauração de um ambiente de grande insegurança jurídica – seria como voltar aos tempos das trevas, o que parece irônico considerando que a tese parte de vozes que dizem querer um ambiente mais claro e transparente para o Brasil.

Felizmente, o ministro Alexandre Silveira (PSD), do Ministério de Minas e Energia, parece estar em sintonia com essa visão. Em seu discurso no evento gas week 2024, o ministro reforçou a importância do respeito a contratos, mantendo a segurança regulatória e jurídica do setor.

E mais: que o acesso à infraestrutura não será mais barreira para entrada de novos agentes ofertantes de gás natural, destacando que o governo federal vai promover um verdadeiro choque de oferta do gás, com acesso à infraestrutura de escoamento e processamento, reduzindo custos.

Infraestrutura e choque oferta

Essas palavras são animadoras porque é exatamente isso que o setor produtivo mais deseja: uma expansão de infraestrutura e um choque de oferta, que faculte uma molécula de gás para a reindustrialização do país, a reativação da indústria de fertilizantes e abra caminho para a transição energética.

E São Paulo, sobretudo, como unidade da federação mais industrializada, precisa de energia em condições competitivas.

O estado, e sua população, não podem pagar pela falta de iniciativa de empresas transportadoras de gás natural que, já privatizadas, deveriam ter investido na infraestrutura de ativos hoje depreciados, e que, em vez disso, parecem comprometidas apenas em fazer caixa e distribuir dividendos para acionistas estrangeiros que não têm qualquer interesse em desenvolver o mercado de gás brasileiro.

Sabem qual é a margem Ebitda da transportadora que atende a região Sudeste do Brasil? 92%, ou seja, mais de 90% da receita da transportadora (paga pelo consumidor de gás natural) vira lucro para os acionistas desta empresa. Um belíssimo negócio.

Aliás, todo o investimento da transportadora do Sudeste somado desde que foi privatizada, em 2017, não chega ao investimento da concessionária de distribuição de gás paulista somente no ano de 2023. E agora essa mesma transportadora que não investe quer tomar o gasoduto da distribuidora e taxar a indústria de São Paulo arbitrariamente.

A indústria paulista não pode ser discriminada com medidas que só servem para roubar sua competitividade e encarecer o custo dos produtos que chegam aos consumidores finais.

Reconhecer o Subida da Serra como gasoduto de distribuição, sem limitações de acesso a fontes de suprimento para a distribuidora, conforme praticado em outros estados e permitido pela lei, sem cobranças de taxas indevidas, representa mais do que uma medida de bom senso e respeito às regras estabelecidas. É impreterível para que tenhamos um mercado de gás mais aberto e competitivo, em benefício da indústria brasileira.

Cabe revisitar a pergunta inicial deste artigo: quem quer um gás natural mais caro para a indústria de São Paulo?

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado

Carlos Cavalcanti é vice-presidente da Fiesp e ex-diretor titular do Departamento de Infraestrutura da Fiesp (2008-2021)