A transição energética pode presenciar o surgimento de uma nova cadeia logística: o transporte marítimo de hidrogênio liquefeito (LH₂). O que parecia distante há poucos anos, é uma realidade mais próxima do que se imagina, isso, claro, se de fato o comércio internacional de hidrogênio se desenvolver e se consolidar.
O hidrogênio é um gás muito leve e volátil, difícil de ser armazenado e transportado, exigindo sua compressão ou conversão em outras formas para deslocamento, em especial, de longa distância.
Hoje, o hidrogênio liquefeito já é transportado por dutos e caminhões, ainda que não na escala esperada caso se confirme a demanda global por hidrogênio de baixo carbono. Mas o transporte em navios, similares ao que hoje ocorre com gás natural liquefeito (GNL), ainda está sendo desbravado.
Uma das líderes em estudos neste sentido é a japonesa Kawasaki Heavy Industries (KHI), com o navio Suiso Frontier, um piloto de um transportador de hidrogênio liquefeito, com testes em alto mar desde 2021, incluindo o transporte da Austrália para o Japão, com um tanque com capacidade de 1250 metros cúbicos (m³)
O volume é tímido se comparado a capacidade atual dos cargueiros de GNL que variam entre 125 mil m³ a 266 mil m³. Mas a KHI já iniciou a construção de um novo navio transportador com capacidade de 40 mil m³ de hidrogênio liquefeito e já tem autorização de autoridades marítimas para um projeto bem maior, com capacidade de 160 mil m³.
A companhia utilizou sua expertise em construção de navios de GNL e a experiência em tecnologia de armazenamento de LH2 para a agência espacial nacional do Japão, a JAXA.
O gerente de projeto da KHI, Takashi Yoshiyama, traça o paralelo desta forma de transporte com o desenvolvimento do gás natural liquefeito.
“O hidrogênio liquefeito é o combustível neutro em carbono por excelência — não tóxico, produzindo apenas vapor d’água quando queimado, mas, de resto, semelhante ao GNL”, disse Yoshiyama.
“O capitão do navio, os tripulantes e os operadores de terminais que já manusearam hidrogênio liquefeito anteriormente afirmaram que qualquer pessoa com experiência no manuseio de GNL deve ser capaz de lidar com o gás sem problemas”, acrescentou.
A expectativa, segundo ele, é que até 2030 uma cadeia de suprimentos de hidrogênio liquefeito em grande escala já esteja estabelecida.
Também com inspiração na indústria aeroespacial, neste caso na NASA, em 2023 a CB&I recebeu a Aprovação em Princípio (AiP) da DNV para o projeto de um sistema de contenção de hidrogênio líquido (LH₂) para navios transportadores. A tecnologia atual poderia atingir até 40 mil m³ por tanque, o que é suficiente para navios de até 200 mil m³.
Consórcios como o formado por Woodside, Hyundai Glovis e Mitsui O.S.K. Lines já trabalham no desenvolvimento de “um sistema integrado de transporte marítimo para hidrogênio líquido (LH₂)” para navios de até 80 mil m³ de capacidade.
Demanda e oferta
Assim com o GNL, tudo dependerá da demanda e da oferta. A tecnologia e os investimentos necessários acompanharão o desejo do mercado. Hoje, alguns dizem ser inviável transportar hidrogênio liquefeito em longas distâncias pelos oceanos (falarei dos desafios mais adiante), mas certamente não foi diferente com o GNL lá atrás.
A tecnologia de gás liquefeito transportado em navios, por exemplo, surgiu no fim da década de 1950, mas foi somente nos anos 2000 que o GNL viu sua verdadeira expansão. E apenas nas décadas seguintes, sua consolidação como commodity global, sendo negociado em grande parte no mercado spot ou de curto prazo.
O número de navios transportadores de GNL saltou de 54 no final da década de 1990 para 772 em 2023. Estimativas da Shell apontam que a demanda global por GNL pode chegar a 718 milhões de metros cúbicos por ano até 2040.
De um lado, o processo foi impulsionado pelo aumento da produção de gás natural barato em países como Austrália, Malásia, Nigéria, Catar e, posteriormente, com o boom de shale gas nos EUA.
Do outro, Japão (pioneiro na importação de GNL), Coreia e China (com seu milagre econômico) impulsionaram o lado da demanda.
Depois, se juntaram ao grupo de consumidores, países da América Latina e a Índia, até que se chegasse ao auge das importações de GNL, a partir de 2022, com a invasão da Ucrânia, forçando a Europa a buscar novas fontes de gás natural, que não a Rússia.
O hidrogênio liquefeito pode ter caminho similar.
Os “poréns”, é claro
Um dos maiores desafios está no custo e eficiência.
A Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) aponta que o início do comércio de hidrogênio nos próximos anos dependerá da comercialização de tecnologias emergentes para o transporte e conversão de hidrogênio, principalmente navios-tanque para LH₂.
O hidrogênio transportado como LH₂ é menos denso em energia em termos volumétricos do que o GNL, portanto, vai demandar maior espaço, seja nas instalações portuárias ou número de navios.
Além disso, enquanto o gás natural se liquefaz a -162°C, o hidrogênio requer resfriamento a de cerca de -253°C e deve ser mantido nessa temperatura durante o transporte. Esse processo e sua conversão, hoje, pode consumir uma quantidade de quase 30% da energia contida no próprio hidrogênio. No caso do gás, em média essa perda energética é de 12%.
Contudo, estudo desenvolvido por pesquisadores coreanos apontou que o transporte de hidrogênio liquefeito, ainda que mais complexo, pode ser mais barato que o da amônia — hoje a principal aposta no transporte de de hidrogênio em longas distâncias.
Hidrogênio como substituto do gás natural
O hidrogênio é um substituto e concorrente natural do gás. Ocupará o lugar aquele que for mais competitivo, na indústria, no transporte, na energia.
O Brasil hoje é dependente em boa parte de gás importado, quem vem da Bolívia ou via GNL. Futuramente, poderá ser um exportador de hidrogênio liquefeito, dado seu potencial para produzir um dos hidrogênios de baixo carbono mais competitivos do mundo.
Para isso, precisa estar atento aos movimentos internacionais. Há quem fale em desvantagens na exportação de commodities. Mas olhando de novo o caso do shale gas americano, desde que sua exportação não seja um entrave para o desenvolvimento da indústria nacional, qual seria o real impedimento?
O Brasil encontra-se em posição singular nesta nova geopolítica energética. Seu potencial renovável pode transformá-lo em ator-chave no mercado de exportação de hidrogênio de baixo carbono. Se será liquefeito ou não, dependerá, obviamente, da dinâmica do mercado e do desenvolvimento tecnológico.