O Leilão de Reserva de Capacidade (LRCAP), um dos principais instrumentos do governo federal para garantir a segurança ao sistema elétrico brasileiro, pode se tornar um obstáculo à própria transição energética que o país tenta liderar.
Ao sinalizar a contratação de novas termelétricas movidas a gás natural e carvão, ao lado de biodiesel e hidrelétricas, o desenho do leilão cria riscos para o desenvolvimento do hidrogênio de baixo carbono — em especial o hidrogênio verde, produzido a partir da eletricidade renovável.
Além disso, o governo optou por deixar de fora do LRCAP térmicas a hidrogênio — ou mesmo aquelas híbridas, capazes de operar com misturas de hidrogênio e gás natural, assim como também não considerou o papel do biogás.
A Nexblue, por exemplo, buscou habilitar um projeto de produção de hidrogênio verde destinado à geração de e-metanol e energia termelétrica para participar do próximo LRCAP.
A ideia era mostrar que, no seu modelo de negócio, a usina térmica movida a hidrogênio verde poderia concorrer igualmente com uma a gás natural no leilão, com a vantagem de emissões zero. A empresa esperava um parecer favorável, o que não ocorreu.
Sujando o grid
O fator mais preocupante, entretanto, é que ao priorizar fontes fósseis, o leilão pode “sujar” o grid brasileiro, hoje um dos mais limpos do mundo, com cerca de 90% de geração renovável.
Esse efeito de “contaminação de carbono” tem implicações diretas na competitividade do hidrogênio verde brasileiro.
Mercados como o europeu exigem que o produto e seus derivados tenham origem em eletricidade quase totalmente renovável.
Na prática, quanto mais “sujo” o grid, maior a necessidade de investimentos relacionando a adicionalidade e temporalidade, para atender aos critérios da União Europeia, o que encareceria ou inviabilizaria os projetos de produção de hidrogênio verde e derivados que olham a exportação.
Sobrevida aos fósseis
Outro risco é o bloqueio de mercado pelos combustíveis fósseis.
Ao contratar termelétricas com acordos de longo prazo, o país cria ativos que irão operar por décadas, travando espaço para a expansão das fontes renováveis e para o uso de eletricidade limpa em eletrolisadores.
O resultado pode comprometer tanto a meta de neutralidade climática quanto a ambição de desenvolver uma economia do hidrogênio robusta e competitiva.
Há ainda o impacto econômico, uma vez que a expansão de térmicas fósseis tende a manter o preço da eletricidade em patamares elevados e voláteis, prejudicando o modelo de negócios dos eletrolisadores, que dependem de energia renovável barata e previsível.
Além disso, ao ancorar o gás natural às térmicas, a demanda pelo insumo pode pressionar o preço e a oferta, afetando também futuros projetos de hidrogênio azul, produzido a partir do gás com captura e armazenamento de carbono (CCS).
O LRCAP também não exige a prontidão das térmicas a gás natural para converão ao hidrogênio no futuro.
Um modelo similar ao que chegou a ser desenhado no primeiro edital do certame que foi cancelado, que inclui usinas a óleo combustível e diesel interessadas em converter seus geradores para uso de fontes mais limpas.
A prontidão para o hidrogênio é essencial para prolongar a vida útil dos ativos energéticos, ao mesmo tempo em que reduz riscos e viabilizar uma transição gradual e efetiva para a descarbonização.
Algo que agora ficará à escolha de cada empreendimento, que poderão adotar turbinas a hidrogênio em resposta à falta de máquinas convencionais no mercado.
Leilão de baterias
Mesmo no campo da inovação tecnológica, o LRCAP parece ignorar o potencial do hidrogênio.
Além das aplicações industriais e em transporte, o hidrogênio verde pode atuar como uma forma de armazenamento energético de longo prazo — uma “bateria sazonal” capaz de equilibrar o sistema em períodos de escassez.
Neste caso, o excedente de energia renovável, hoje desperdiçado com os cortes de geração, poderia ser utilizado para produção de hidrogênio a custo menor, capaz de ser armazenado, e depois aproveitado como fonte térmica, trazendo flexibilidade e resiliência ao sistema.
Fabricantes globais como Wärtsilä já oferecem motores que operam com misturas de até 25% de hidrogênio e podem ser convertidos para uso 100% do combustível.
Ignorar essas tecnologias significa abrir mão de uma alternativa que poderia combinar segurança energética com descarbonização.
Essa funcionalidade seria especialmente relevante diante do próximo leilão de baterias, que deve contemplar sistemas de armazenamento de energia (BESS) e usinas hidrelétricas reversíveis, mas não o hidrogênio.
O risco é também geopolítico. Contratar carvão e gás em um momento em que o Brasil tenta se posicionar como líder climático e anfitrião de eventos internacionais, como a COP30, enfraquece a narrativa de país verde nas negociações.
Ao insistir em um modelo fóssil, sem espaço para inovações, o LRCAP traz desafios para a inserção do Brasil na nova economia do hidrogênio.
