Hidrogênio em foco

Medidas provisórias podem sufocar hidrogênio verde

Obrigação de energia renovável adicional para ZPEs e fim "de desconto no fio" podem comprometer viabilidade econômica do hidrogênio verde

Presidente Lula e o governador do Ceará, Elmano de Freitas, durante visita a obras da Transnordestina, no estado em 18 de julho de 2025 (Foto Ricardo Stuckert/PR)
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva e o governador do Ceará, Elmano de Freitas (Foto Ricardo Stuckert/PR)

Recentemente, a indústria de hidrogênio verde, ainda em fase embrionária, se viu diante de um duplo desafio com a publicação de duas medidas provisórias: a MP 1307/2025, chamada “MP das renováveis”, e a MP 1300/2025, que trata da reforma do setor elétrico. 

Embora ambas tragam objetivos legítimos — incentivar a transição energética, atrair investimentos e consertar distorções do setor elétrico —, os efeitos combinados podem comprometer a viabilidade econômica de empreendimentos de hidrogênio estratégicos para a descarbonização da economia e a reindustrialização do país.

Adicionalidade sem sentido

A MP 1307/2025 estabelece que “toda energia elétrica a ser utilizada por empresas instaladas em Zonas de Processamento de Exportação (ZPE) seja proveniente de usinas de fontes renováveis que não tenham entrado em operação até a data de publicação da medida provisória”. 

Na prática, isso significa a adoção do critério de adicionalidade, segundo o qual só energia renovável “nova” poderia abastecer esses empreendimentos.

O objetivo é estimular novos investimentos em geração limpa e posicionar empresas brasileiras de ZPEs na vanguarda da sustentabilidade, segundo a justificativa do governo, aumentando sua competitividade internacional num mercado que valoriza produtos com baixa pegada de carbono.

O problema é que as ZPEs estão diretamente associadas ao hidrogênio verde no país, especialmente no Porto do Pecém, no Ceará, e em Parnaíba, no Piauí, que concentram os projetos de grande porte dessa indústria em desenvolvimento. 

A exigência de energia nova poderia elevar substancialmente os custos de produção, já que esses empreendimentos ficariam proibidos de contratar energia de usinas existentes, muitas delas com infraestrutura amortizada e preços mais competitivos. 

Como a eletricidade pode representar até 80% do custo do hidrogênio verde, qualquer aumento no preço da energia afeta diretamente a competitividade do produto brasileiro.

Essa medida também contrasta com a legislação brasileira já aprovada para o hidrogênio de baixo carbono, que sabiamente deixou de fora o critério de adicionalidade. 

A decisão se baseou no fato de que quase 90% da matriz elétrica nacional é renovável, o que reduz, no médio prazo, a necessidade deste requisito.

Internacionalmente, há sinais de que a imposição rígida da adicionalidade pode atrasar a indústria. 

Na União Europeia, por exemplo, as regras atuais têm sido alvo de forte pressão para flexibilização. Países como a Alemanha chegaram a solicitar à Comissão Europeia o adiamento da exigência de 2028 para 2035. 

O argumento é que impor o uso exclusivo de energia nova em projetos de hidrogênio verde no início da indústria funcionaria como uma barreira de entrada, encarecendo e retardando investimentos, como se tem observado.

Oportunidade perdida em tempos de curtailment

A imposição de adicionalidade no Brasil também ignora um contexto importante: o problema crescente do curtailment — o corte na geração de usinas eólicas e solares por falta de demanda ou de capacidade de transmissão.

Segundo a consultoria Wood Mackenzie, corte pode crescer 300% no Brasil na próxima década.

A taxa média de corte no Sistema Interligado Nacional deve saltar de 2% em 2025 para 8% em 2035, chegando a 11% no Nordeste, mesmo com a expansão da malha de transmissão. Em 2024, essas perdas somaram R$ 1,7 bilhão para os geradores.

O hidrogênio verde poderia funcionar como uma âncora de demanda para absorver parte desse excedente, transformando desperdício em valor econômico, como tratei em outra coluna.

No entanto, ao exigir energia nova, a MP das renováveis mata essa oportunidade, retirando uma solução prática para o problema e diminuindo a viabilidade dos projetos.

Fim do “desconto no fio” e restrições à autoprodução

A reforma do setor elétrico proposta pela MP 1300/2025, com apreciação adiada pelo Senado, apesar de tentar consertar distorções causadas por subsídios, acrescenta outro obstáculo ao hidrogênio verde. 

Um dos pontos mais sensíveis é o fim imediato do chamado “desconto no fio”, que reduz as tarifas de uso do sistema de transmissão e distribuição para consumidores que utilizam energia renovável. 

Hoje, projetos de hidrogênio verde — assim como data centers e outras indústrias eletrointensivas — baseiam suas modelagens financeiras na manutenção desse benefício.

Para a Associação Brasileira da Indústria de Hidrogênio Verde (ABIHV), a extinção do desconto, sem uma transição proporcional, quebraria o equilíbrio econômico de contratos já firmados e poderia gerar judicializações, inviabilizando projetos bilionários. 

Outro ponto crítico é a mudança no regime de autoprodução de energia. Desde os anos 1990, essa modalidade permite que empresas gerem ou adquiram energia diretamente de produtores, garantindo previsibilidade e preços mais baixos. 

A MP impõe que novos empreendimentos tenham apenas 60 dias para se enquadrar como autoprodutores por equiparação, o que criaria insegurança jurídica e diminuiria o potencial de novos contratos.

Perda de vantagem competitiva

Apontado como um dos mais baratos do mundo, o hidrogênio verde brasileiro deixaria de ter um preço tão baixo se contabilizados os encargos e subsídios para o consumidor final de eletricidade. 

Nesse contexto, a autoprodução é uma solução para garantia da competitividade,

Restrições à autoprodução e ao uso de energia existente, somadas ao fim do desconto no fio, formam um cenário de pressão de custos que pode comprometer a atratividade do Brasil para investidores nacionais e estrangeiros — justamente num momento em que outros países competem para atrair essa nova indústria.

Não se trata de abrir mão de investimentos em novos parques renováveis, ou manter distorções no setor elétrico que favorecem apenas alguns segmentos, mas de reconhecer que a indústria do hidrogênio verde precisa de um período de maturação. 

A combinação das duas MPs, sem ajustes, arrisca sufocar o setor antes mesmo de sua consolidação. 

Uma transição regulatória mais gradual e mecanismos que valorizem o aproveitamento de energia já disponível — especialmente diante do curtailment — poderiam alinhar os objetivos de expansão renovável com a competitividade industrial.

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