A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a favor da Aneel, isentando a agência de ressarcir geradores de energia renovável pelos cortes de geração – conhecidos como curtailment –, reforça a necessidade de se discutir a otimização do uso do excedente de geração de energia limpa no Brasil.
O problema do curtailment não é novo. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), frequentemente, precisa desligar usinas eólicas e solares devido a limitações na infraestrutura de transmissão e ao excesso de geração em determinados momentos.
Em 15 meses, essas perdas somaram R$ 1,7 bilhão, de acordo com associações do setor.
Por outro lado, o ressarcimento dessas perdas recai, como sempre no setor elétrico, sobre o consumidor final. A conta fica mais cara pela falta de planejamento e interesses setoriais.
Diante desse cenário, a produção de hidrogênio verde aparece como uma alternativa estratégica, capaz de solucionar parte do problema e trazer maior resiliência ao sistema, mantendo o grid limpo.
Do problema, uma oportunidade
O curtailment ocorre quando a capacidade de geração de fontes renováveis excede a demanda ou quando a infraestrutura de transmissão é insuficiente.
O fenômeno é ruim para para os geradores, que no balanço final têm suas margens de lucro reduzidas, e ruim para novos investidores, que não querem pagar pelo risco em novos parques.
No fim, é ruim para o país, que ao invés de aproveitar seu enorme potencial de geração renovável e ampliar sua participação ainda mais na matriz elétrica, vai convivendo com encarecimento da conta de luz e o avanço de políticas de incentivo para o gás e o carvão – em busca de mais segurança.
Mas o problema também revela uma oportunidade única de transformar esse excedente de energia em hidrogênio verde por meio de eletrólise.
No Reino Unido, por exemplo, estudos mostraram que o uso do excesso de energia eólica para produzir hidrogênio verde poderia gerar economias de bilhões de libras, ao mesmo tempo em que resolveria o problema do desperdício energético e impulsionaria o setor nascente de hidrogênio.
Segundo o relatório, em 2022, o volume de geração eólica desperdiçada foi suficiente para produzir mais de 118 mil toneladas de hidrogênio verde, e esse número pode chegar a 455 mil toneladas até 2029.
Além disso, os custos com congestionamento entre 2021 e 2022 totalizaram 350 milhões de libras, valores que poderiam ser mitigados se esse excedente fosse usado na produção de hidrogênio verde.
Baterias para sistema
Além das diversas aplicações do hidrogênio na indústria, e transporte, e a para não fugirmos do setor elétrico, uma das maiores vantagens do hidrogênio verde é sua capacidade de funcionar como armazenamento sazonal de longo prazo.
Isso porque, o hidrogênio possui uma capacidade de armazenamento energético, por vezes, superior à de soluções tradicionais, como baterias.
Enquanto as baterias atendem bem às flutuações de curto prazo – como oscilações diárias e horárias –, o hidrogênio se destaca por permitir o armazenamento de grandes quantidades de energia ao longo de meses.
Tal característica poderia abrir inclusive a possibilidade de usinas geradoras que produzem hidrogênio como aptas a participar de leilão de capacidade. A Eletrobras olha para essa possibilidade, com armazenamento da geração hidrelétrica.
Previsto para o final do ano, o Leilão de Reserva de Capacidade (LRCAP), inclui pela primeira a contratação de projetos de armazenamento com disponibilidade de potência mínima de 30 megawatts (MW).
As baterias também aparecem como alternativa aos cortes de geração das renováveis, e como vantagem, com menor perda de eficiência energética, quando comparadas ao armazenamento via hidrogênio.
Ainda assim, não se pode perder de vista que o hidrogênio produzido com o excesso de energia renovável pode ser armazenado e utilizado posteriormente para gerar eletricidade, seja em células de combustível ou em turbinas a gás.
Isso poderia garantir o fornecimento contínuo e confiável de energia de baixo carbono, inclusive combinando em pequenas misturas com o gás natural, reduzindo as emissões das termelétricas.
A Wärtsilä, por exemplo, já conta com tecnologia de motores que podem rodar a gás natural com uma mistura de até 25% de hidrogênio ou podem ser convertidos para 100% de hidrogênio. A companhia espera começar a receber as primeiras encomendas já este ano, com entrega em 2026, inclusive no Brasil.
Desafios no armazenamento
Embora promissor, o uso do hidrogênio enfrenta desafios técnicos importantes. O armazenamento é considerado difícil, devido à sua baixa densidade, quando comparado ao gás natural, por exemplo
Entre as soluções estudadas, além da compressão do gás, está o armazenamento geológico. O Advanced Clean Energy Storage Hub, nos Estados Unidos, é um exemplo. Por lá, a Chevron espera produzir e estocar hidrogênio verde em cavernas de sal para abastecer uma térmica.
Essa tecnologia, que aproveita a experiência prévia com o armazenamento de gás, também pode ser aplicada em campos de petróleo esgotados e aquíferos.
Outro é o armazenamento do hidrogênio líquido, mas que necessita de resfriamento extremo (-253°C) em tanques, o que diminui sua viabilidade, a não ser em casos de aumento da escala.
Outra alternativa em estudo é o armazenamento em materiais, que utilizam substâncias químicas para absorver ou reagir com o hidrogênio, facilitando seu manuseio e transporte, a exemplo de hidretos metálicos, e o mais comum, o uso de amônia.
Seja como for, é importante que tanto a Aneel como outros agentes se debrucem sobre as soluções que o hidrogênio possa trazer ao sistema, sem que isso, claro, recaia sobre o bolso do consumidor final de energia, já penalizado.