No relatório da Agência Alemã para Cooperação Internacional (GIZ) sobre o potencial da África para produção de hidrogênio verde (.pdf), o ministro de Energia da África do Sul, Kgosientsho Ramokgopa, sintetiza uma encruzilhada histórica em que se encontram Brasil, países africanos e tantos outros do Sul Global.
“Sob a bandeira da Agenda 2063 da União Africana e da Presidência do G20 da África do Sul, estamos promovendo uma visão de energia justa, inclusiva e transformadora”, diz o ministro
Segundo ele, soberania energética, equidade social e integração regional não são ideais abstratos, mas “a estrutura que sustenta a industrialização, a geração de empregos e a criação de novas cadeias de valor continentais ancoradas no hidrogênio verde e em seus derivados”.
Países do Sul Global são detentores de vastos recursos renováveis e de minerais críticos essenciais à transição energética, e possuem potencial incomparável para produção de hidrogênio, em especial o verde, em escala competitiva.
Mas é importante questionar se este recurso será vetor de industrialização e inclusão social, ou servirá apenas para perpetuar assimetrias históricas, em que o Sul Global fornece energia e matérias-primas baratas, enquanto o Norte mantém a tecnologia, o valor agregado e o poder político.
Caso na Namíbia
Alguns sinais de alerta já estão dados. O European Center for Constitutional and Human Rights (ECCHR) expôs em abril de 2025 o caso do megaprojeto da Hyphen Hydrogen Energy, na Namíbia.
A joint venture britânico-alemã, apoiada pela gigante energética RWE e chancelada pelo governo alemão como projeto “estratégico”, ocuparia 4 mil km² de terras ancestrais do povo Nama, palco do primeiro genocídio do século XX, perpetrado pelo Império Alemão.
As comunidades locais não foram consultadas, não deram seu consentimento e não receberam informações adequadas sobre os impactos.
Parte da infraestrutura será erguida dentro do Parque Nacional Tsau||Khaeb, uma região com alta concentração de biodiversidade árida, única no mundo.
Para o ECCHR, trata-se de um caso emblemático de “colonialismo energético”, no qual o discurso europeu de descarbonização se sobrepõe a direitos humanos, soberania territorial e preservação ambiental.
O Norte da África é apontado com uma das regiões mais promissoras na produção e importação para a Europa de hidrogênio de baixo carbono, valendo-se da proximidade geográfica e da existência de gasosutos de gás natural que já conectam ambos o continentes. E já conta com diversos memorando de entendimento para projetos entre europeus e países como Marrocos, Argélia, Tunísia e Egito.
Contudo, há preocupações crescentes de que, em vez de ajudar a região africana em sua transição verde, esses projetos resultem na exploração de recursos locais, na desapropriação de comunidades, em danos ambientais e favorecimento de elites corruptas.
O Observatório Econômico Tunisiano (OTE) também chegou a denunciar a influência da Alemanha na nova política energética da Tunísia, e que esse papel, por vezes, iria além dos objetivos declarados dos atores tunisianos e alemães, atingindo outros propósitos geopolíticos.
Garantias de industrialização e desenvolvimento
Este é um exemplo extremo, mas que deve servir de alerta para Brasil, países da África e demais nações do Sul Global, mostrando que a corrida global pelo hidrogênio tem capacidade de reproduzir padrões coloniais de exploração.
Sob a bandeira da transição energética, repete-se a lógica da dependência — exportar moléculas e importar tecnologia.
Cabe aqui ressaltar que no caso da exploração de novas reservas de petróleo e gás no Brasil, como deseja o governo, tampouco há uma política pública que garanta que isso se reverta em soberania energética, uma vez que o país vem reduzindo sua capacidade de refino capaz de atender plenamente à demanda interna de combustíveis.
Para evitar essa armadilha, é essencial que os países do Sul Global possam construir estratégias próprias, ancoradas em políticas industriais e em salvaguardas socioambientais, e não serem apenas atores passivos de estratégias traçadas por países ricos, que hoje detém também da maior fatia de investimentos para transição.
A União Africana, ao aprovar sua Estratégia e Plano de Ação para o Hidrogênio Verde em 2025, sinalizou que pretende liderar o processo, em vez de apenas reagir às demandas externas.
O Brasil também enfrenta dilemas semelhantes. De um lado, negocia exportações de hidrogênio e derivados com a União Europeia. De outro, precisa consolidar hubs industriais internos que usem o insumo para transformar sua própria indústria —siderurgia, fertilizantes, transporte pesado.
A resposta para escapar do risco de mero exportador primário também passa pela cooperação Sul-Sul. Brasil e África já tiveram laços mais intensos em décadas passadas, seja no comércio, seja no campo diplomático.
O hidrogênio oferece a chance de renovar essa parceria em bases modernas, integrando ciência, tecnologia, capacitação e indústria.
Programas conjuntos de formação técnica, desenvolvimento cruzado de cadeias de valor, integração logística e pesquisa aplicada podem tornar a transição energética um motor de soberania compartilhada.
Fóruns internacionais
O papel dos fóruns multilaterais é igualmente decisivo.
O Brics, agora ampliado a 11 membros, responde por mais da metade da geração elétrica mundial e por quase metade da produção renovável.
Em 2024, geraram mais do que a soma de Estados Unidos e União Europeia. No entanto, como aponta estudo do Instituto ClimaInfo e da Zero Carbon Analytics, ainda falta ao bloco colocar a industrialização verde no centro de sua agenda.
O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) já financiou projetos relevantes, mas precisa assumir uma missão mais ambiciosa, e catalisar a indústria de hidrogênio verde nos países-membros, com foco em tecnologia própria e inclusão social.
O G77, que reúne mais de 130 países em desenvolvimento, também é espaço natural para essa articulação. Se atuarem como bloco, países do Sul Global podem definir os termos do comércio e da certificação do hidrogênio, em vez de apenas aceitar padrões impostos pelo Norte.
Um exemplo prático seria que países com alto potencial de biomassa, como o Brasil, pudessem receber investimentos para produção de hidrogênio de baixo carbono a partir dessa matéria-prima, reconhecendo o atributo ambiental de redução de carbono dessa rota de produção — hoje desprezada pela União Europeia, por exemplo.
O hidrogênio, pode, como disse Ramokgopa, ser o alicerce de uma nova arquitetura econômica. Mas essa arquitetura precisa ser construída sob outras bases que não coloniais.
Cabe ao Sul Global decidir. E cabe ao Brasil, pela sua dimensão econômica, peso diplomático e tradição energética, assumir a liderança desse processo, tendo a COP30 como uma vitrine importante para isso, em especial, nos debates da viabilização de US$ 1,3 trilhão em financiamento climático para países em desenvolvimento.