Hidrogênio em foco

Hidrogênio e biometano: os gases do futuro 

Brasil tem oportunidade única de desenvolver simultaneamente biometano e hidrogênio de baixo carbono para descarbonizar sua matriz

Trabalhador inspeciona instalações da GNR Fortaleza, usina de biometano a partir do aterro de Caucaia (CE), parceria entre Ecometano (MDC) e Marquise Ambiental (Foto: Barbosa Neto/Divulgação)
Planta da GNR Fortaleza, usina de biometano a partir do aterro de Caucaia (CE), parceria entre Ecometano (MDC) e Marquise Ambiental (Foto: Barbosa Neto/Divulgação)

O Brasil, com sua vasta produção agropecuária e agroindustrial e importante matriz elétrica renovável, tem nas mãos um potencial significativo para liderar a transição energética global, com os gases do futuro: hidrogênio e biometano

A integração desses gases “verdes” podem representar uma oportunidade única para descarbonizar setores intensivos em emissões, como a indústria e o transporte pesado, além de impulsionar a reindustrialização sustentável do país. 

A eletrificação terá papel central na transição energética, mas como alerta a Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês), desenvolver a infraestrutura de gás verde será igualmente crucial.

O Comitê sobre Mudanças Climáticas do Reino Unido também reconhece que tanto o biometano quanto o hidrogênio de baixo carbono serão necessários para atingir o net zero.

Ambos os gases possuem uma grande vantagem: sua produção descentralizada, que não depende de grandes infraestruturas de escoamento, como gasodutos, para seu consumo final. 

Em comum, eles também podem ajudar a descarbonização do gás natural, com pequenas adições de um ou de outro, ou de ambos, na rede. Algo que já vem sendo estudado no Brasil, no caso do hidrogênio, e que já está estabelecido, no caso do biometano, por meio da Lei do Combustível do Futuro (CF).

O CF visa, entre outras coisas, fomentar a conexão de plantas de biometano com as redes de distribuição e transporte de gás natural, e descarbonizar o setor de gás natural, a partir de 2026, com a adição de 1% do biocombustível ao gás produzido ou importado — percentual será acrescido, de forma gradativa, até atingir os 10% de volume.

Além do papel de reduzir a pegada de carbono da economia, em substituição gradativa aos fósseis, esses gases podem trazer maior independência, no longo prazo, à importação de gás natural e à volatilidade de preços internacionais. Afinal, seriam 100% brasileiros. 

Pensando na segurança energética e na redução das emissões, a União Europeia, por exemplo, já possui políticas para facilitar o acesso de gases renováveis e com baixo teor de carbono — como hidrogênio e biometano — à rede existente, eliminando as tarifas das conexões transfronteiriças e reduzindo as tarifas nos pontos de injeção.

Para criar mais espaço para gases limpos no mercado europeu, os contratos de longo prazo de gás natural também não poderão ser prorrogados para além de 2049.

São alguns pontos que o Brasil poderia se inspirar, levando em conta, obviamente, fatores como acessibilidade e modicidade tarifária.

Hidrogênio a partir de biogás

Para além da coexistência, o biogás também pode ser uma matéria-prima importante para a produção de hidrogênio de baixo carbono, via reforma, ou, até mesmo, com pegada de carbono negativa, se sua produção estiver associada a captura e armazenamento de carbono (CCS), conhecida como BECCS (bioenergia com CCS). 

A produção do hidrogênio a partir do biogás também teria capacidade de aumentar ainda o portfólio e a flexibilidade das usinas de biogás, diversificando os produtos energéticos e, portanto, os potenciais mercados dessas usinas.

Como aponta a Cedigaz, a esperada utilização do hidrogênio como energético também surge com uma nova saída para o biometano, seja por meio da injeção na rede e seu uso em refinarias, seja pela reforma do biomentano em unidades descentralizadas de reforma de metano a vapor.

Atualmente, o Brasil produz cerca de 4,6 bilhões de metros cúbicos de biogás por ano, o que representa apenas 3,3% do potencial estimado de 84,6 bilhões de metros cúbicos anuais. 

Essa capacidade é derivada principalmente de resíduos agropecuários e agroindustriais, posicionando o país como um dos potenciais líderes globais na produção de biogás.

O biometano (CH4), além de matéria-prima, também poderia ser um carregador de hidrogênio, podendo se aproveitar das infraestruturas existentes para seu transporte, inclusive de longas distâncias.

Concorrente do hidrogênio? 

Por outro lado, biometano e hidrogênio também podem ser considerados concorrentes.

Na avaliação de alguns agentes do mercado, por exemplo, o biometano representaria para o Brasil o que o hidrogênio verde é para a Europa: uma molécula-chave na transição energética, com a vantagem de aproveitar a infraestrutura de gás já existente. 

Isso porque a digestão anaeróbica é uma tecnologia madura e pronta para uso, que transforma resíduos orgânicos em biometano, ao contrário do hidrogênio, cuja produção em larga escala e infraestrutura ainda enfrentam desafios técnicos e econômicos.

Um exemplo concreto disso é o projeto da Yara no Brasil, que produz amônia verde a partir do biometano, criando um insumo essencial para fertilizantes com pegada de carbono reduzida. 

Entretanto, a própria companhia já admitiu que possui planos de produção de amônia verde, em larga escala no Brasil, a partir do hidrogênio produzido via eletrólise com energia renovável. 

É importante destacar que, até mesmo na Europa, apesar dos esforços e subsídios importantes para a produção de hidrogênio verde, o biometano vem se mostrando uma solução mais viável no curto prazo.

A dificuldade para projetos de hidrogênio de larga escala saírem do papel e de ganharem volume e competitividade suficiente para destravar a demanda estão fazendo com que o biogás ganhe mais atenção. 

Mesmo governos que apostaram pesadamente no hidrogênio, como o da Itália, começaram a redirecionar recursos para acelerar o biometano.

Recentemente, a Itália realocou 640 milhões de euros, originalmente dedicados ao hidrogênio, para o desenvolvimento do biometano, reconhecendo sua maturidade tecnológica e impacto imediato. Os recursos são parte do Fundo da União Europeia para reestruturação econômica após a pandemia de covid-19. 

Uma “escolha pragmática”, sublinhou o texto italiano, que permitirá “acelerar a produção de biometano, um gás renovável obtido a partir de resíduos”.

Injeção na rede 

Mesmo com os desafios no presente, nos gasodutos do futuro, talvez gás natural, hidrogênio e biometano façam parte de um mesmo blend

O Ceará, que foi pioneiro na produção e distribuição de biometano, hoje se posiciona como um dos maiores hubs de hidrogênio verde do país, e enxerga, no futuro, a combinação de ambos os gases. 

A Cegás, distribuidora do estado, inclusive, estuda a utilização de biometano para a produção de hidrogênio limpo e vê ambos fazendo parte da sua rede de distribuição. 

Um estudo investigou os efeitos da inserção de hidrogênio no gás natural e no biometano em um sistema de distribuição canalizado no Brasil, com o objetivo de avaliar sua viabilidade na transição energética e na redução das emissões de CO2. 

Foram considerados dois cenários. Com a mistura de hidrogênio com biometano e com gás natural, com base nas normas da ANP para análise das propriedades do gás. 

Os resultados indicam que a incorporação de até 3% de hidrogênio no biometano e até 11% no gás natural é tecnicamente viável, respeitando os critérios de qualidade estabelecidos. 

A injeção de biometano e hidrogênio na rede de gás natural seria, portanto, uma estratégia eficaz para reduzir as emissões de carbono. 

Segundo pesquisas do Instituto Avançado de Tecnologia e Inovação (Iati), a mistura de hidrogênio ao gás natural e ao GLP também traria mais competitividade ao mercado, uma vez que hidrogênio tem um poder calorífico muito elevado, o que melhora a combustão do gás natural.

Industrialização interiorizada

A produção descentralizada de biometano e hidrogênio também permite a instalação de unidades industriais em regiões afastadas dos grandes centros urbanos, reduzindo a dependência de infraestruturas tradicionais como gasodutos.

Essa descentralização favoreceria a interiorização da indústria, promovendo o desenvolvimento regional e aproveitando os recursos locais de biomassa e energia.

Na Europa, a Associação Europeia de Biogás (EBA) participa do projeto TITAN, que explora uma tecnologia inovadora de produção de hidrogênio por meio do craqueamento e reforma a seco do biogás, com foco em pequenas usinas remotas. 

Esse modelo também poderia ser replicado no Brasil e se somar a outras soluções já em andamento.

Produção de combustíveis avançados 

A sinergia entre esses dois vetores também se manifesta na produção de combustíveis avançados, como o SAF (combustível sustentável de aviação), combinando o CO2 biogênico da digestão anaeróbica com hidrogênio renovável. 

Um exemplo é o projeto do Grupo Mele, no Paraná, que espera exportar bio-syncrude — um substituto sintético sustentável do petróleo bruto — para produção de SAF em refinarias na Alemanha.

A ideia é transformar o biogás oriundo dos resíduos da suinocultura em biometano e combiná-lo ao hidrogênio verde, obtido por eletrólise da água e reforma do biogás para produção do syncrude.

A Sanepar, empresa de saneamento do Paraná, também estuda, junto à alemã Graforce, uma tecnologia de produção de hidrogênio verde a partir do biometano gerado em estações de tratamento de esgoto.

A tecnologia inovadora permite a obtenção de carbono elementar, um material com alto valor agregado e aplicação em biofertilizantes. 

Na Áustria, a Graforce foi responsável pela a primeira planta em escala do mundo a gerar hidrogênio por meio da plasmólise do metano. A plasmólise é um processo termoquímico que utiliza plasma para quebrar as moléculas de metano (CH4), em hidrogênio (H2) e carbono sólido (C) — sem a emissão direta de dióxido de carbono (CO2).

São alguns dos muitos exemplos da sinergia industrial do biometano e o hidrogênio.

O Brasil tem a oportunidade única de utilizar e desenvolver simultaneamente biometano e hidrogênio de baixo carbono para descarbonizar sua matriz, interiorizar a sua indústria e fortalecer sua soberania energética.

Entretanto, a adoção desses gases para a substituição gradual dos fósseis dependerá de ganho de escala e volume e competitividade dos preços, que poderá ser alcançada com a precificação de carbono em um mercado regulado, por exemplo.

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