Hidrogênio em foco

Fóssil dá um novo “gás” ao hidrogênio na Europa

Depois de anos defendendo o hidrogênio verde, Bruxelas amplia oficialmente o leque, com o hidrogênio de baixo carbono

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, Dan Jørgensen, comissário europeu, e Fatih Birol, diretor geral da IEA, em declaração à imprensa, em 2025 (Foto Dati Bendo/União Europeia)
Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em declaração à imprensa em 2025 (Foto Dati Bendo/European Union, 2025)

A União Europeia entrou, enfim, na fase em que a narrativa “verde” começa a ceder espaço a um pragmatismo energético forçado por pressões econômicas, atrasos nos desenvolvimentos tecnológicos e um setor industrial inquieto. 

Após anos defendendo o hidrogênio verde (via eletrólise) como a espinha dorsal da descarbonização da economia, Bruxelas ampliou oficialmente o leque, com o hidrogênio azul, produzido a partir de gás natural associado à captura e armazenamento de carbono (CCS), e de baixo carbono, que ganhou status regulatório e incentivos financeiros.

O movimento, que até pouco tempo atrás enfrentava forte resistência, marca a vitória do lobby do gás e de países produtores como a Noruega, hoje protagonista não apenas no fornecimento de gás ao continente, mas também no avanço de tecnologias de CCS

E sinaliza que, para a transição energética europeia, antes dogmática em eólica, solar e hidrogênio renovável, está dando lugar à urgência de colocar moléculas no mercado, ainda que elas não sejam tão verdes quanto o imaginado no auge do RePowerEU.

Gás legitimado

O divisor de águas veio com a aprovação do Ato Delegado que define o que a UE considera hidrogênio de baixo carbono — e, portanto, elegível a financiamentos comunitários. A regra exige redução mínima de 70% nas emissões em comparação às rotas fósseis convencionais. 

Isso abriu a porta para o hidrogênio azul, feito a partir de gás natural com CCUS, enquanto deixou de fora, por ora, a rota que utiliza energia nuclear.

Na esteira, a Comissão Europeia anunciou, nesta semana, três pacotes de financiamento totalizando € 5,2 bilhões — todos alimentados pelas receitas do mercado de carbono (EU ETS) —, e que tentam conectar produtores de hidrogênio com possíveis consumidores industriais, hoje, o maior dos desafios.

O pacote mais simbólico é o terceiro leilão do Banco Europeu de Hidrogênio, em que, pela primeira vez, projetos de eletrólise de baixo carbono, utilizando eletricidade do grid — que, eventualmente pode ter em sua matriz combustíveis fósseis, desde que garanta uma redução de 70% nas emissões em comparação ao uso integral de combustíveis fósseis.

Até aqui, esses leilões se concentravam exclusivamente na produção de hidrogênio renovável via eletrólise com eólica e solar, ou conectados a grids com mais 90% de renovabilidade, rota conhecida como hidrogênio verde, ou combustível renovável de origem não biológica (RFNBO).

O pano de fundo da mudança é o avanço insuficiente do hidrogênio, apontado pela própria agência reguladora de energia do bloco, a ACER.

Com cerca de € 20 bilhões em subsídios, a UE deveria ter 6 GW de eletrólise instalados até 2024, mas tem apenas 300 MW atualmente, cerca de 5% do previsto. 

A meta de 40 GW até 2030, ou 54 GW, somando os planos nacionais, parece cada vez mais distante. 

A escassez de projetos viáveis, somada a custos persistentemente altos do hidrogênio verde, levou inclusive a desistências de vencedores dos primeiros leilões do Banco Europeu de Hidrogênio, como Zeevonk (Holanda), Lubmin (Alemanha) e Catalina (Espanha). Juntos, eram 1,3 GW, quase um terço da capacidade contratada.

A mudança indica que a Europa reconhece que, sem ofertar volumes mais acessíveis e previsibilidade ao mercado industrial, a economia do hidrogênio simplesmente não decola. 

Novas infraestruturas para o velho fóssil

Simultaneamente, a UE aprovou sua segunda lista de Projetos de Interesse Comum e Mútuo (PCI e PMI), com mais de uma centena de iniciativas relacionadas ao hidrogênio, o equivalente ao dobro da lista anterior. 

A maioria envolve gasodutos dedicados ou adaptados para hidrogênio.

Contudo, organizações ambientais, como da Bankwatch e da Food & Water Action, mostram que aproximadamente 75% desses dutos são pensados, na prática, para transportar a molécula derivada de gás fóssil. 

Especialistas alertam ainda que muitos deles correm o risco de nunca verem a cor do hidrogênio, funcionando, de fato, como infraestrutura adicional para o gás natural. 

Os deputados do Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia dispõem de dois meses para analisar o regulamento proposto e levantar quaisquer objeções sobre a lista de projetos. Se não forem apresentadas, o regulamento entrará em vigor. 

A própria ACER já questionou a credibilidade das projeções que justificam uma rede continental, sugerindo que o consumo deve permanecer concentrado em polos industriais, e não em longas rotas de transporte.

Metano e brechas regulatórias

Com a ascensão do hidrogênio azul, cresce também a preocupação com as emissões fugitivas de metano — gás de efeito estufa muito mais potente que o CO2 — ao longo da cadeia de produção, liquefação, transporte e regaseificação do gás.

Críticas recentes destacam que ajustes no cálculo europeu reduziram em um terço os valores padrão de emissões associadas ao gás canalizado e ao GNL, abrindo uma brecha que pode subestimar o impacto climático real dessa expansão.

Industrialização e geopolítica

O interesse renovado no hidrogênio de origem fóssil também revela uma disputa geopolítica.

A UE corre contra o tempo para eliminar o gás russo até novembro de 2027 e, ao mesmo tempo, precisa blindar sua indústria contra a perda de competitividade para a China — até mesmo quando o assunto é hidrogênio.

A pressão industrial é grande. Sem a molécula mais barata, setores como aço, química e refino não conseguem migrar para processos de baixa emissão.

Nesse contexto, o hidrogênio azul funcionaria como uma ponte, entre entre a ambição climática e a realidade econômica.

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