Hidrogênio em foco

Fantasma da adicionalidade volta a assombrar planos de hidrogênio

Adicionalidade, que já atrapalha projetos na Europa, ameaça futuro do hidrogênio verde no Brasil, paralisando decisões de investimento

Aerogerador no complexo eólico Ventos do Araripe da Casa dos Ventos, localizado no município de Araripina, Pernambuco (Foto Divulgação)
Aerogerador no complexo eólico Ventos do Araripe da Casa dos Ventos, localizado no município de Araripina, Pernambuco (Foto Divulgação)

O mesmo Nordeste que desponta como a principal fronteira para o hidrogênio verde no Brasil — com dezenas de projetos anunciados e investimentos estimados em mais de R$ 110 bilhões a partir de 2029 —  tem governadores e parlamentares apoiando uma medida que pode colocar em risco a competitividade dessa nova indústria. 

Trata-se da introdução, via MP 1304/2025, do critério de adicionalidade no regime de autoprodução de energia elétrica. O que, na prática, pode encarecer e até inviabilizar projetos de hidrogênio verde e outros empreendimentos eletrointensivos.

O retorno da adicionalidade

A MP 1304, que reforma o setor elétrico, incluiu na nova redação do artigo 16-B da Lei 9.074/1995 a obrigação de que todos os novos arranjos de autoprodução contratem energia de parques geradores novos.

Isso significa que empresas que pretendem produzir sua própria energia — uma prática essencial para reduzir custos e garantir previsibilidade — não poderão utilizar usinas já em operação. 

A regra institui, em essência, o critério de adicionalidade, isto é, a exigência de que o consumo de energia de um projeto “verde” seja suprido exclusivamente por energia renovável nova. 

Esse mesmo princípio havia sido debatido e excluído da legislação brasileira de hidrogênio de baixo carbono, por ser considerado um entrave desnecessário. Na época, a proposta foi levantada pelo senador do Ceará, Cid Gomes (PSB).

Voltou pelas mãos do governo na edição da MP 1307/2025, conhecida como MP das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs), publicada em julho.

A justificativa é incentivar novas obras, mais empregos com a instalação de potência nova.

As críticas se estenderam ao contexto do mercado: a crise é de sobra de energia, bilhões perdidos pelas renováveis centralizadas, em uma disputa com a geração distribuída e outras fontes.

Na Europa, onde a adicionalidade foi originalmente adotada para evitar o desvio de energia limpa de outros consumidores, o conceito está em revisão por encarecer os projetos e travar o avanço do hidrogênio verde.

Um país com energia de sobra

Com 90% de sua matriz elétrica já renovável, o Brasil é um dos poucos países capazes de desenvolver o hidrogênio verde sem precisar da adicionalidade.

Ao adotar o conceito europeu, o país corre o risco de abrir mão da sua maior vantagem competitiva que é a alta disponibilidade de energia limpa, ainda mais em um contexto de excesso de oferta. 

A expansão acelerada de renováveis nos últimos anos, em especial de geração solar distribuída, provocou uma crise de curtailment — o desligamento forçado de usinas, sobretudo eólicas, por falta de demanda ou capacidade de escoamento.

Ao obrigar os autoprodutores a construir novos empreendimentos, a MP 1304 tende a agravar esse desequilíbrio, impedindo o aproveitamento de energia já existente, muitas vezes mais barata e limpa, como a das hidrelétricas amortizadas, capazes de ofertar energia ainda mais competitiva.

Reserva de mercado e insegurança jurídica

Associações industriais e de consumidores, como AbraceABCE, Abiape, Abihv Abrage  pedem que o dispositivo seja vetado e têm classificado o novo artigo da MP 1304 como uma reserva de mercado.

Isso porque ele cria uma espécie de privilégio artificial para novas usinas, em detrimento de ativos já em operação, muitos deles com energia disponível para contratos de autoprodução.

Além de elevar os custos, a medida cria insegurança jurídica ao alterar regras de um setor que já vinha se ajustando para atender à demanda de grandes consumidores, como as indústrias de amônia verde, aço verde e combustíveis sintéticos.

Para empreendimentos que ainda buscam financiamento, o risco regulatório se soma à já complexa equação econômica da produção de hidrogênio verde.

A polêmica das ZPEs

Antes da 1304, a MP 1307 já havia introduzido exigência semelhante ao determinar que novas empresas instaladas em ZPEs usassem exclusivamente energia proveniente de usinas que entrassem em operação após a publicação da medida.

Embora reforce o compromisso do país com a sustentabilidade, a regra também favorece projetos específicos, como o de autoprodução da Casa dos Ventos em parceria com o data center da Bytedance (dona do TikTok) e o projeto de amônia verde da própria Casa dos Ventos, ambos localizados na ZPE do Pecém (CE).

O risco para a indústria do hidrogênio

O hidrogênio verde é intensivo em eletricidade. Entre 60% e 70% de seu custo de produção está atrelado ao preço da energia.

Qualquer medida que encareça o insumo energético afeta gravemente a competitividade dessa indústria.

Em vez de aproveitar sua abundância de energia renovável para atrair indústrias eletrointensivas e exportar combustíveis de baixo carbono, o país pode acabar travando investimentos e afastando capital internacional.

A adoção de critérios descolados de nossa realidade energética pode transformar uma vantagem comparativa — a energia limpa e barata — em um obstáculo. 

É importante também levantar outra questão sensível, que é o princípio da impessoalidade e da isonomia na administração pública, em que políticas públicas devem ter caráter geral e visar o bem comum, sem favorecer empresas ou grupos específicos. 

Importar o fantasma da adicionalidade, que já assombra o setor nos debates europeus, ameaça agora o futuro do hidrogênio verde brasileiro, paralisando decisões de investimentos e, como consequência, prolongando a dependência de combustíveis fósseis.

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