A transição energética global está colocando duas indústrias estratégicas — data centers e hidrogênio verde — em posição de tensão, mas também de possível convergência.
Ambas compartilham a condição de empreendimentos ultraeletrointensivos, dependentes de fontes renováveis e pressionados por obrigações climáticas.
No Brasil, essa disputa já é visível. Data centers e plantas de hidrogênio verde já estão competindo pelo acesso à rede de transmissão, especialmente em regiões de grande geração eólica e solar, como o Nordeste.
O diagnóstico é apontado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) — que, inclusive, espera incluir os centros de dados no Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE), diante da escalada da demanda global de TI — e do O Operador Nacional do Sistema (ONS).
“A concorrência é real. Carga é carga em qualquer lugar do sistema”.
Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), o consumo elétrico dos data centers deve dobrar até 2030, chegando a 945 TWh, puxado sobretudo pela expansão da inteligência artificial generativa.
A EPE tenta antecipar os estudos do chamado R1, que subsidiarão o Plano de Outorgas de Transmissão (POTEE) para projetos de hidrogênio verde.
Como a ideia é minimizar riscos de “arrependimento”, ou seja, evitar a construção de linhas de transmissão ociosas, o estudo também deve considerar a instalação de data centers na mesma região.
Um ponto de atenção é o Nordeste
Epicentro do boom renovável brasileiro, a região Nordeste já atrai grandes projetos de hidrogênio verde, favorecidos pela proximidade com portos e pelas Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs), onde o consumo de energia terá de vir obrigatoriamente de novas usinas renováveis, prevê medida provisória recente.
Mas os data centers, que buscam operar com 100% de energia limpa, também olham para a região.
Além da oferta abundante de eólica e solar, Fortaleza e Recife já são pontos de atração, com a rede de cabos submarinos que conectam o Brasil à África, Europa e América do Norte.
O dilema é que a infraestrutura de transmissão e novos parques de geração renovável não avançam na mesma velocidade da demanda.
Esse conflito não é exclusivo do Brasil. Em hubs digitais como Frankfurt e Amsterdã, data centers já consomem até 40% da eletricidade local, em Dublin essa fatia chega a 80%, pressionando governos a impor moratórias à instalação de data centers.
No Brasil, o risco é travar dois setores considerados importantes pelo governo para a agenda de descarbonização e reindustrialização.
A janela de complementaridade
Se a competição pelo grid é evidente, também começa a emergir um cenário de complementaridade. O hidrogênio pode desempenhar papel crucial como solução energética para os próprios data centers.
Os centros de dados precisam de energia firme, rodando os serviços sem interrupção, o que demanda sistemas de backup, como baterias, e conta também com a conexão na própria rede elétrica.
Hoje, a maioria dessas instalações opera com geradores a diesel para backup ou até mesmo como fonte contínua de energia em regiões de restrição de rede.
No Brasil, a política recém lançada do Redata, estabelece que centros de dados serão beneficiados a alíquota zero dos tributos federais PIS/Pasep, Cofins, IPI (produtos industrializados) e Imposto de Importação para aquisição de equipamentos de tecnologia da informação e comunicação, desde que usem energias renováveis ou “fontes limpas”.
O modelo adotado provavelmente será por meio de consórcios de autoprodução, em que um gerador é sócio do data center, ou por meio de contratos de compra de energia (PPA, na sigla em inglês).
De qualquer forma, enquanto baterias para armazenamento não forem adotadas, quando não houver sol ou vento produzindo energia, os data centers terão que recorrer muitas vezes a fontes fósseis, direta ou indiretamente, para assegurar seu funcionamento pleno.
Nos Estados Unidos, a startup ECL inaugurou em 2024 o primeiro data center modular fora da rede alimentado por hidrogênio, em Mountain View, Califórnia. Com células a combustível de membrana de troca de prótons (PEM), a planta não só gera eletricidade como reaproveita a água resultante do processo, atingindo operação hídrica zero.
Na Europa, a NorthC já usa hidrogênio verde para backup em data centers na Holanda, conectados ao hub NortH2, que prevê produzir até 10 GW de hidrogênio até 2040.
Essas experiências mostram que o hidrogênio pode oferecer ao setor digital as vantagens do armazenamento energético em larga escala e até mesmo a possibilidade de operar dentro e fora da rede, aumentando a resiliência em possíveis eventos de interrupção no fornecimento de energia.
Descarbonização e soberania digital
Para o Brasil, a complementaridade pode se traduzir em oportunidade.
Ao invés de rivais, data centers e plantas de hidrogênio poderiam ser vizinhos estratégicos em polos renováveis, compartilhando infraestrutura de transmissão e armazenagem de hidrogênio, por exemplo.
O hidrogênio poderia substituir o diesel, carvão e gás natural nos sistemas de backup dos data centers.
Ao mesmo tempo, recorrendo ao caso do Nordeste, o avanço da indústria digital na região criaria demanda local para parte da produção de hidrogênio verde, reduzindo a dependência exclusiva das exportações.
Uma estratégia de cluster energético-digital, que poderia posicionar o Brasil na vanguarda de dois mercados em expansão.
O ponto de atenção é a defasagem entre a velocidade de crescimento da demanda e o ritmo de expansão da infraestrutura elétrica, o que exigirá um trabalho redobrado de planejamento.
O Brasil tem a chance de criar sinergias entre duas cadeias de valor globais. Se apostar na integração, poderá transformar o dilema da disputa em alavanca de industrialização limpa e soberania digital.