Ainda que não no ritmo esperado, a indústria global de hidrogênio de baixo carbono vem se estruturando, com a implementação de um novo leilão mundial de hidrogênio e acordos para corredores de importação do energético entre países da Europa, Oriente Médio e Norte da África.
E quando se fala em hidrogênio renovável, o Brasil tem nas mãos uma das maiores vantagens comparativas do mundo: um sistema elétrico interligado, confiável e predominantemente renovável.
Com mais de 90% da sua matriz elétrica proveniente de fontes renováveis, o país se posiciona como um dos candidatos naturais à liderança na exportação de hidrogênio de baixo carbono e derivados.
Isso, claro, se superar os atuais de desafios de pedidos de conexão à rede, em que plantas de hidrogênio verde de larga escala correm o risco de ficar sem conexão, devido um desalinhamento entre a expansão do sistema de transmissão elétrica e a demanda de projetos de hidrogênio no Brasil.
Mas, enquanto se resolvem os desafios domésticos, é importante que o Brasil atue de forma estratégica e articulada na arena internacional, especialmente junto à Comissão Europeia — o braço executivo da União Europeia, responsável por propor leis, implementar políticas e fiscalizar o cumprimento das regras.
É preciso demonstrar à União Europeia, provavelmente o mercado mais promissor para o hidrogênio produzido no Brasil, o que é o nosso Sistema Interligado Nacional (SIN), um dos maiores ativos do setor elétrico brasileiro.
Graças a ele, é possível transmitir energia limpa gerada no Nordeste, por exemplo, para consumidores industriais no Sul e Sudeste.
Contudo, a regulamentação europeia que trata da certificação de hidrogênio renovável pode se tornar um entrave se não for devidamente interpretada no contexto brasileiro.
Segundo os critérios definidos pela UE, os projetos de hidrogênio devem atender a exigências de adicionalidade, regionalidade e temporalidade — todas elas baseadas no conceito de bidding zones.
Essas bidding zones, no modelo europeu, são zonas, em geral, onde há um único preço de energia no mercado e que operam como subsistemas independentes.
Alguns países europeus inteiros são considerados como zonas únicas, como é o caso da França, Espanha e Portugal. Já Itália e Suécia são divididas em várias zonas, refletindo limitações da rede de transmissão entre as diferentes regiões desses países.
Competitividade por um fio
Se o Brasil não conseguir o reconhecimento de que todo o SIN equivale a uma única bidding zone, corre o risco de ver a competitividade do seu hidrogênio produzido via eletrólise ir pelo ralo, ou melhor, pelo fio.
Esse risco se demonstra quando olhamos para a distribuição da renovabilidade elétrica regional. Dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) mostram que, em 2023, a região Nordeste registrou 94,6% de sua geração elétrica proveniente de fontes renováveis, com destaque para eólica e solar.
Já a região Sudeste/Centro-Oeste, onde se concentra boa parte do consumo industrial nacional (como siderurgia, mineração e química pesada), teve uma taxa de renovabilidade de 79,1%, enquanto a região Sul ficou com 76,4% de renovabilidade.
Na prática, isso significa que projetos de hidrogênio localizados no Sul e Sudeste terão maior dificuldade em atender aos critérios da União Europeia, especialmente o de adicionalidade.
Isso porque, se cada subsistema for considerado uma bidding zone separada, as usinas precisarão comprovar que a energia renovável utilizada na eletrólise é “nova”, localizada na mesma região e sincronizada temporalmente com a produção de hidrogênio — o que aumenta drasticamente os custos e limita a escalabilidade.
Outra opção seriam projetos off-grid, desconectados do SIN — um fator de encarecimento do produto final.
Esse entrave não se limita apenas à exportação direta de hidrogênio verde, e pode esbarrar também em seus derivados industriais, como o aço verde, amônia, metanol e combustíveis sintéticos.
É fundamental que a União Europeia compreenda essa especificidade brasileira, que permite que a energia renovável gerada em qualquer ponto do país seja acessível a todos, garantindo a rastreabilidade e a integridade do processo.
Momento ideal para o Brasil influenciar o debate europeu
O momento atual é especialmente propício para o Brasil se posicionar. A Comissão Europeia está debatendo não apenas a definição de hidrogênio de baixo carbono, como também sofrendo pressão para flexibilizar os critérios aplicáveis ao hidrogênio verde.
Em março de 2024, a Comissão lançou uma consulta pública sobre a certificação de hidrogênio de baixo carbono, com vistas a incorporar tecnologias como o energético produzido a partir de gás natural com captura de carbono, energia nuclear e outras rotas — sinalizando uma abordagem mais pragmática e “agnóstica” quanto à origem da energia, muito próxima da política adotada no Brasil.
Além disso, há discussões abertas sobre a flexibilização dos critérios de adicionalidade, regionalidade e temporalidade. Um relatório recente do think tank europeu Agora Energiewende recomenda ajustes nos prazos e condições dessas exigências, sob o risco de inviabilizar o crescimento da oferta de hidrogênio verde.
Na mesma linha, o “TCU europeu” e o governo alemão — até então o mais restrito nas políticas para hidrogênio — sugeriram a flexibilização e a postergação dessas regras.
A própria Comissão Europeia admitiu, em eventos públicos, que pode rever os critérios para acomodar realidades técnicas e geográficas diferentes — um espaço legítimo para o Brasil apresentar sua proposta de reconhecimento do SIN como uma bidding zone única.