“Nós insistimos em celebrar desbravadores solitários, mas mesmo os mais admirados e bem-sucedidos inventores são parte de uma verdadeira cadeia de suprimentos da inovação, basicamente ignorada pela mitologia do “homem único” ou do ‘momento eureca’”.
A frase com que se inicia esse artigo foi cunhada por Waclav Smil, professor tcheco-canadense conhecido por estudar a história dos materiais e da energia.
Em “The Myth of the Inventor Hero”, Smil destaca que o progresso não é tanto o resultado de genialidade individual (o chamado momento “eureca!”), mas na verdade uma combinação de fatores como progressivas inovações, esforço coletivo e — relevante para o presente artigo — um ambiente institucional responsivo.
O mundo moderno experimenta uma contradição única: ao mesmo tempo em que o progresso técnico-científico atinge velocidades cada vez maiores, os cidadãos esperam (de fato, exigem) que o Estado fiscalize e garanta, via regulação, a ordem e a qualidade de um sem-número de aspectos da vida contemporânea — do meio ambiente ao desempenho de atividades econômicas de relevante interesse social.
Ocorre que há um abismo, que não para de crescer, entre essa velocidade e a segurança esperada do Estado.
Muitas das discussões travadas por administrativistas na atualidade têm sido dirigidas a como reduzir essa crescente distância. O sandbox regulatório é apenas uma de várias ferramentas por meio das quais espera-se que o Estado regule o desenvolvimento de novas formas de fazer as coisas sem sufocar a inventividade dos que ousaram fazê-las.
Talvez tenha ganhado tanto destaque apenas porque sua tipologia seja inusitada, em especial em um país de tradição jurídica romano-germânica como o Brasil.
O sandbox regulatório é de origem inglesa, e nasceu na esteira da crise financeira de 2008 — mais exatamente, dos excessos de regulação pró-consumidor que se seguiram à crise propriamente dita, e cujo efeito mais óbvio foi inibir o desenvolvimento das fintechs.
Ainda receosos de desregular por completo o segmento (afinal, a desregulamentação era encarada como uma das principais causas da recente crise), mas igualmente cientes da importância do desenvolvimento representado pelo novo tipo de instituição financeira, os formuladores de políticas públicas britânicos optaram pelo sandbox.
No contexto brasileiro, o sandbox corresponde a um ato liberatório concedido pela Administração Pública para que agentes privados desempenhem, por um determinado prazo, dentro de certos parâmetros e sujeitos a um certo grau de supervisão, uma atividade com conteúdo ou formato inovador — cujo desempenho o ente estatal, dentro de sua discricionariedade, julga conveniente permitir.
Há um feixe amplo de interesses que envolve e decorre do sandbox, cuja compreensão é essencial para entender sua função e, por meio dela, o próprio conceito do instituto:
(i) incentivo à inovação: há uma flexibilização do controle estatal(particularmente, do regime sancionatório aplicável), para permitir que o modelo inovador admitido ao sandbox acerte, erre (o chamado “erro honesto”) e, afinal, se desenvolva; e
(ii) aprendizagem estatal: o Estado assume, por meio do monitoramento da atividade inovadora e do diálogo com o empreendedor, o papel de coparticipante do processo de experimentação regulatória, adquirindo conhecimento prático sobre novas tecnologias e modelos de negócio, o que lhe permite calibrar normas futuras com maior precisão e efetividade.
Dentro do sistema jurídico brasileiro, o sandbox não poderia ser permitido pela Administração Pública se não mediante autorização legal específica – a qual surgiu com o advento da Lei Complementar nº 182/2021, a chamada “Lei das Startups”.
Segundo o art. 11 do referido diploma, “os órgãos e as entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial poderão, individualmente ou em colaboração, no âmbito de programas de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), afastar a incidência de normas sob sua competência em relação à entidade regulada ou aos grupos de entidades reguladas”.
Também nessa mesma direção geral, o Decreto nº 10.712/2021, que regulamenta a Lei do Gás, cujo art. 26, § 1º, estabelece que “a ANP poderá adotar soluções individuais que visem ao atendimento do disposto na Lei nº 14.134, de 2021, respeitado seu rito decisório, até que seja editada regulação específica pela referida Agência”.
Embora a finalidade desse dispositivo pareça estar mais ligada a viabilizar a transição dos antigos institutos previstos na regulação setorial rumo ao novo mercado de gás, parece-nos que a forma ampla com que ele foi redigido também permite a criação de soluções ad hoc, de mais curto prazo, para modelos invadores, semelhantes àquelas operacionalizadas com o sandbox.
A partir daí, a figura do sandbox foi sendo adotada por diversos entes da Administração Pública brasileira, com destaque para a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Embora, a rigor, o programa de sandbox da ANP ainda precise ser objeto de regulação específica, a autarquia responsável pelo setor de petróleo e gás brasileiro foi bastante ativa na concessão de autorizações excepcionais para o desempenho de atividades inovadoras, como se demonstra a partir da tabela abaixo.
| Item | Sociedades | Assunto | Autorização Excepcional | Referência |
| 1 | Companhia Ultragaz S.A. | Projeto piloto de uso de GLP em equipamentos vedados pelo regramento setorial (caldeiras, geradoras de vapor e uso em motores de combustão interna, bombas de irrigação e geradores de energia elétrica). | Fase 1 (laboratorial): autorização excepcional pela ANP em 19/08/2021, por 6 (seis) meses, para testes laboratoriais. Fase 2 (campo): autorização excepcional pela ANP em 09/09/2024, por 17 (dezessete) meses, para a realização de testes em campo pela Ultragaz, sob a responsabilidade do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo. | SEI ANP nº 48610.201436/2020-14 |
| 2 | Projeto Green Bound – Gás Verde S.A. (grupo Urca Energia) e L’Oréal Brasil | Fornecimento de biometano comprimido para os veículos da frota cativa da L’Oréal Brasil de Cosméticos Ltda, p/ substituição da frota de caminhões a diesel por veículos movidos a biometano. | A ANP aprovou, em 24/04/2025, o termo de compromisso autorizativo disciplinando a autorização excepcional pelo período de 24 (vinte e quatro) meses. | SEI ANP nº 48610.238392/2023-21 |
| 3 | Projeto GOfit – Delft Serviços S.A. e Posto Viana de Abastecimento Ltda | Projeto piloto de entrega de combustível líquido, especificamente a gasolina C e o etanol hidratado, em local diverso do estabelecimento da revenda varejista, na modalidade delivery. | A ANP aprovou o termo de compromisso autorizativo disciplinando a autorização excepcional em 12/05/2020, com validade até 12/11/2020. | SEI ANP nº 48610.220691/2019-22 |
| 4 | Projeto Corredor Verde – Virtu GNL Participações S.A. | Implementação de 3 pontos de abastecimento de veículos rodoviários de carga com GNL small scale. | A ANP firmou termo de compromisso autorizativo em 09/04/2025, disciplinando a autorização excepcional em favor da Virtu GNL. | SEI ANP nº 48610.227775/2024-54 e SEI ANP nº 48610.232234/2023-67 |
| 5 | Estocagem geológica de CO2 – Agrisolutions Indústria de Biocombustíveis S.A. (FS Bioenergia) | Aquisição de dados geocientíficos com perfuração exploratória e aquisição de testemunhos no poço 2-FSAS-1-MT (Bacia dos Parecis), para avaliar a viabilidade de estocagem geológica de CO2 associada à produção de etanol | Autorização da ANP para aquisição de dados sob regulação experimental de projetos-piloto de CCS; injeção de CO2 condicionada à licença ambiental de instalação (LI) e ao cumprimento das etapas autorizativas com controle de riscos | Processo nº 48610.212416/2022-31 |
É interessante observar os dois objetivos que orientam a atuação do regulador federal: de um lado, permitir a experimentação a partir de modelos de negócio inovadores, na perspectiva comercial e logística. De outro, testar a regulação aplicável a verdadeiras tecnologias de transição.
O aspecto mais relevante, no entanto, consiste na interpretação das medidas concretas adotadas, as quais sinalizam diretrizes para a elaboração do normativo definitivo da ANP sobre sandbox regulatório, conforme previsto na Agenda Regulatória 2025-2026.
Nesse contexto, o primeiro passo é definir com clareza o escopo e os objetivos de cada experimento, incluindo as hipóteses a serem testadas, os benefícios públicos esperados e os parâmetros de avaliação.
A duração do projeto-piloto deve ser limitada e vinculada ao cumprimento de marcos de desempenho, com revisões periódicas para fins de ajuste e reavaliação.
No aspecto territorial, restrições geográficas podem ser úteis para reduzir a exposição inicial e facilitar a fiscalização.
A coleta de dados é outro elemento essencial: garantir a coleta adequada e a divulgação dos resultados é fundamental tanto para o aprendizado regulatório como para assegurar a legitimidade do instrumento perante o mercado e a sociedade.
Além disso, é indispensável incorporar a coordenação interinstitucional no processo. Um exemplo é o caso da estocagem de CO₂ em Parecis, em que o licenciamento ambiental é pré-requisito para a etapa de injeção.
Isso exige alinhamento com os órgãos ambientais, especialmente no que diz respeito ao monitoramento, à verificação e à responsabilização por eventuais vazamentos.
Por fim, é importante ter bem claro o “plano de saída”. É preciso que cada sandbox evidencie se e como os resultados serão incorporados à regulação setorial, o que acontece com direitos e obrigações dos participantes após o término, e de que modo experiências bem-sucedidas podem se tornar autorizações amplas.
Em paralelo, o regime sancionador aplicável em caso de infrações no ambiente experimental deve conter regras claras, prevendo em especial a possibilidade de suspensão do regime de sandbox, se necessário.
Em síntese, o sandbox da ANP deve funcionar como um espaço seguro de experimentação, em que a inovação é testada com critérios claros e supervisão proporcional aos riscos.
Bem desenhada, a experiência mostra que o instituto é capaz de converter pilotos em conhecimento regulatório útil e regras mais previsíveis, sem perder de vista a responsabilidade com agentes econômicos, a sociedade e o meio ambiente.
Mais que isso: o sandbox regulatório da ANP representa uma abertura estratégica para a experimentação de novas tecnologias e modelos de negócio inovadores.
Essa abordagem é especialmente importante diante dos desafios atuais, como a segurança do suprimento energético para data centers de inteligência artificial.
Considerando a natureza única da matriz elétrica brasileira e o perfil complementar de atendimento à capacidade do gás natural, o sandbox permite integrar a indústria de gás às normas emergentes do setor elétrico, promovendo sinergias e maior eficiência sistêmica.
A Agenda Regulatória 2025–2026 é o momento para organizar esse aprendizado. Ao fazê-lo, a autarquia sinaliza ao mercado que a experimentação disciplinada não é uma exceção, mas um caminho legítimo — e ele próprio, de fato, bastante inovador — para a criatividade responsável.
Felipe Boechem é sócio de Petróleo e Gás da Lefosse Advogados.
Rafael Martins é counsel de Petróleo e Gás da Lefosse Advogados.
Gustavo Almeida é advogado de Desenvolvimento e Financiamento de Projetos da Lefosse Advogados.
