Desde que se começou a falar em abertura do mercado de gás natural, os agentes desse setor começaram a prestar mais atenção às tarifas de transporte. Mas há um equívoco comum quando se afirma que o combustível é caro no Brasil por conta do transporte e que uma revisão tarifária resolveria o problema.
Há dois estudos do Ministério de Minas e Energia (MME) que demonstram a parcela de custo de cada elo da cadeia de valor do gás, sendo um de 2018 e outro de 2024.
Ambos mostram que o setor de transporte é o que representa a menor parcela de custos na composição média dos preços ao consumidor final — 13% e 10%, para cada um desses períodos. É possível analisar no gráfico abaixo o recorte do primeiro estudo:
Neste primeiro levantamento, o valor da molécula representava 46% no preço final do gás. Já nas estimativas do órgão publicadas no ano passado, o impacto da molécula (incluindo escoamento e processamento) alcançou 60%, conforme demonstra a figura abaixo:
Nota-se que, nos dois estudos, o transporte permanece com a menor fatia, considerando inclusive as despesas com tributos e com a distribuição do gás.
O “empate” com a distribuição no estudo de 2024 pode ser explicado pelo fato de o MME ter usado a média para consumidores industriais, que pagam preços menores do que outros setores (residencial, comercial e automotivo).
Em 2018, o órgão havia considerado o que chama de média Brasil, aquela que inclui todos os tipos de consumidores de gás.
Portanto, é difícil saber se o clamor por uma revisão tarifária antecipada ou pela extinção precoce dos contratos de serviço de transporte — os chamados GTAs (da sigla para gas transport agreements, em inglês) — é provocada por ignorância, má fé ou por uma estratégia de autopreservação de agentes que querem desviar de si, o foco das atenções.
Façamos um exercício, utilizando os dados do MME de 2024 para verificar qual seria o impacto de uma redução nas tarifas de transporte ao preço final do gás.
Ainda que houvesse um cenário digno de promoção de supermercado do tipo “o patrão ficou maluco”, com redução de 50% nas tarifas, o preço final diminuiria apenas 5%. Não que esse valor seja desprezível, mas 5% de redução não é suficiente para tornar o gás competitivo.
Por outro lado, se considerarmos um desconto de 50% no valor da molécula, o impacto seria uma redução de 30% no preço final do gás.
Conclui-se, portanto, que embora todo esforço para deixar o preço do gás mais competitivo seja válido, a revisão tarifária das transportadoras não é uma “bala de prata”. A parcela de maior relevância e que fará uma diferença significativa ao consumidor é a da molécula.
História recente
As tarifas de transporte são públicas há mais de 20 anos, conforme estabelecido na Portaria da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) nº 1 de 2003.
Mas até pouco tempo atrás, o único vendedor de gás natural no país, à época, adotava a “venda CIF”, na qual já se inclui o custo do transporte.
E ainda que cada transportadora praticasse as suas próprias tarifas — previstas em seus contratos de transporte e aprovadas pela ANP, o agente incumbente sempre utilizou em seus acordos de compra e venda de gás o chamado “postalzão”.
Trata-se de uma média das tarifas da malha integrada (compostas pela NTS, TBG e TAG), em alusão a um selo postal, fazendo com que as tarifas individuais de cada contrato e de cada transportadora passassem despercebidas pelo mercado.
A verdade é que a abertura do mercado de gás provocou um interesse pelas tarifas de transporte, afinal, além da venda de duas das três principais transportadoras do país, tornou-se possível a contratação do serviço de transporte por terceiros, em modalidade firme, trocando o “postalzão” embutido no preço do gás pela assinatura de GTAs direto com as transportadoras.
A Nova Lei do Gás, de 2021, foi votada com a abertura do mercado já em curso. Sua promulgação foi essencial para garantir maior segurança jurídica ao ambiente de negócios, que passava por mudanças significativas, apenas ancoradas por resoluções do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e notas técnicas da ANP.
Um importante pilar da nova Lei do Gás determina o respeito aos contratos existentes. O Artigo 44 do Capítulo IX diz que “As novas modalidades de serviço de transporte não prejudicarão os direitos dos transportadores decorrentes dos contratos vigentes na data da publicação desta Lei”.
Isso significa que os contratos legados, frequentemente atacados por alguns agentes do mercado, são instrumentos legais. Questioná-los ou pensar em descumpri-los é quebrar a regra de ouro de respeito aos contratos, decisão que afasta investidores em qualquer país.
Há ainda uma outra crítica que desconsidera os prazos de vencimento de contratos: “os ativos já estão depreciados e as transportadoras estão recebendo em dobro”.
Portanto, faz-se importante esclarecer: a Nova Transportadora do Sudeste (NTS) e a Transportadora Associada de Gás (TAG) ainda não passaram ainda uma revisão tarifária porque a Resolução ANP n° 15, de 2014, que estabelece os critérios e o procedimento para cálculo das Tarifas de Transporte, foi publicada anos após a assinatura dos GTAs vigentes.
Desta forma, a resolução só se aplica após o vencimento desses contratos, ou a ativos construídos após a sua publicação. Não existe qualquer recebimento indevido por parte das transportadoras.
A Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), a mais antiga das transportadoras, passou por uma revisão tarifária e chamada pública no ano do vencimento do seu primeiro contrato, o TCQ (que vigorou entre 1998 e 2019).
Esse processo abrangeu somente a parcela da capacidade correspondente ao contrato vencido e preservou as receitas oriundas dos outros, que venceriam somente em 2021, 2030 e 2041, respectivamente.
Não por acaso, a primeira revisão tarifária da NTS e da TAG está prevista para esse ano, em função do vencimento dos contratos legados Malha Sudeste e Malha Nordeste. Da mesma forma que aconteceu com a TBG, a revisão abrangerá somente os ativos pertencentes a esses contratos.
Os demais estão atrelados a contratos ainda vigentes e passarão pelo processo de revisão quando vencerem. Ou seja, não cabe nenhum tipo de antecipação.
Nos últimos anos, muitos avanços foram promovidos no mercado de gás e muitos outros ainda estão por vir. Mas a manutenção da segurança jurídica é essencial para se garantir a sustentabilidade das empresas do setor.
Não é desrespeitando contratos que os custos vão cair, mas sim, promovendo a competição saudável, através do fomento da oferta de gás nacional e da concorrência.
Então, vamos ajustar as nossas miras?
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Maurício Simões Lopes é Gerente Geral Institucional da NTS.