A tragédia é um gênero teatral desenvolvido classicamente com objetivos pedagógicos. Busca-se educar os espectadores através de um enredo que normalmente envolve um personagem com uma debilidade ou falha moral (falha trágica) que, ao longo da história, deflagra uma série de angústias e catástrofes (terror trágico).
A ideia é que o espectador aprenda com a experiência do personagem e evolua sem a necessidade de passar pelo mesmo sofrimento.
As tragédias shakespearianas ensinam, por exemplo, como a insegurança de Otelo, a indecisão de Hamlet e a impulsividade de Romeu, embora naturais e até mesmo louváveis aos olhos de diversos espectadores, acabam causando sofrimento aos próprios personagens e potencialmente corroendo a harmonia social.
Nada mais atual que Shakespeare para nos ajudar a refletir sobre o momento do mercado de gás natural no Brasil. E nada melhor do que o clássico Romeu e Julieta (1597) para pensar especificamente sobre as próximas revisões de tarifas de transporte em contexto do fim de contratos legados.
Em recente decisão, a Agência Nacional do Petróleo Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) determinou a divulgação de planilhas utilizadas pela Petrobras para fins de cálculo da tarifa de transporte do Contrato Legado Malhas Sudeste. O mercado celebrou a medida por promover maior transparência na formação de preços.
Na esteira dessa decisão, intensificaram-se as especulações sobre os efeitos da divulgação desse tipo de dado no processo de revisão tarifária das transportadoras.
Especulou-se, inclusive, se tais dados demonstrariam que os investimentos realizados estariam integralmente depreciados e, consequentemente, não haveria qualquer valor econômico a ser remunerado por meio da base regulatória de ativos (BRA) das transportadoras ao término de tais contratos.
Não obstante o desejo justificado de todo o mercado pela redução do preço do gás em geral para os consumidores, é preciso prudência ao se analisar as planilhas de cálculo divulgadas e seus efeitos sobre o processo de revisão tarifária com o objetivo de evitar conclusões precipitadas que, embora bem-intencionadas, podem acabar deflagrando efeitos adversos maiores.
É nessa linha o bom conselho de Frei Lourenço ao impulsivo Romeu: “Seja sábio e vá devagar; tropeçam os que correm depressa”.
Com o objetivo de contribuir para uma maior racionalidade técnica no debate em torno do processo de revisão tarifária das transportadoras e dos eventuais efeitos da divulgação de planilhas de cálculo dos contratos legados, é oportuno revisitar a legislação aplicável ao longo do tempo e qual o posicionamento histórico da ANP sobre esse tema.
Isso porque a redução das tarifas de transporte de gás natural e a expansão dos investimentos só podem ser conciliados de forma sustentável por meio da segurança jurídica.
Breve histórico da regulação da ANP sobre o cálculo da tarifa de transporte
Até 2005, não havia regulação expressa e específica sobre os trâmites e a metodologia de cálculo da tarifa de transporte. O tema era tratado por meio de orientações gerais divulgadas ao mercado pela ANP por meio de notas técnicas como a Nota Técnica 054/2002-SCG, que descreve os conceitos considerados pela ANP no cálculo das tarifas de transporte de gás natural.
A primeira norma sobre o tema foi a Resolução ANP 29/2005, que também não se aprofundou sobre a matéria e estabeleceu que as tarifas aplicáveis deveriam ser comunicadas ao regulador e divulgadas ao mercado. Não havia necessidade de aprovação prévia da agência, nem de submissão de documentação de suporte.
Foi somente com a já revogada Lei 11.909/2009 (posterior aos Contratos Legados) que se introduziu a necessidade de aprovação prévia das tarifas de transporte pela ANP e, consequentemente, a necessidade de apresentação dos estudos que embasam a proposta de tarifa, o que só veio a ser regulado cinco anos depois por meio da Resolução ANP 15/2014.
É digno de nota que tanto a Lei 11.909/2009 quanto a Resolução ANP 15/2014 preservaram expressamente as tarifas de transporte e os critérios de revisão previamente acordados, promovendo o respeito aos contratos em linha com a diretriz da Resolução CNPE 03/2022.
Precedentes (TBG e TSB) de uso do Custo Histórico Corrigido pela Inflação (CHCI) para definição da BRA
A RANP 15/2014 estabelece que a BRA dos gasodutos em operação poderá ser calculada seguindo uma das seguintes metodologias:
- (i) o “Custo Histórico Ajustado pela Inflação”, que consiste em determinar o valor atual dos ativos com base no custo original de aquisição, e no efeito da inflação e da depreciação dos ativos até o presente;
- (ii) o “Custo de Reposição Depreciado”, que consiste em calcular o custo que o transportador teria para construir um novo ativo e reduzir desse valor a depreciação acumulada durante o tempo de vida útil já transcorrido; ou
- (iii) qualquer metodologia alternativa amplamente reconhecida e adotada pelo mercado, descontada a depreciação e a amortização havidas até a data de estabelecimento da tarifa de transporte.
Em seus precedentes de revisão de BRA da TBG e da TSB, a ANP consolidou seu posicionamento no sentido de adotar metodologia de avaliação da BRA com base no método do Custo Histórico Ajustado pela Inflação (IGPM), que é um critério previsto em regulação e reconhecido pelo mercado, conforme se extrai das Resoluções de Diretoria nº 604/2020 e nº 634/2023.
Depreciação de acordo com a vida útil dos ativos
Ao longo de mais de 20 anos, a ANP tem reconhecido que o prazo de depreciação deve refletir ao máximo a perda de valor econômico e a vida útil dos bens, bem como que o prazo de 30 anos é adequado para a depreciação de um gasoduto.
Nessa linha, a Nota Técnica 054/2002-SCG, que foi a principal diretriz para cálculo das tarifas vigentes na celebração da maioria dos Contratos Legados, previa que seria possível estruturar o cálculo da tarifa de transporte de duas formas:
- (i) um fluxo de caixa com um número de períodos que correspondam à vida útil da infraestrutura de transporte; ou
- (ii) um fluxo de caixa com um número de períodos menor do que a vida útil, mas considerando um valor residual ao final do fluxo.
Adicionalmente, a ANP já manifestou que não é unívoca a relação entre o prazo de um contrato de transporte e o prazo de depreciação dos ativos. Dessa forma, o encerramento da vigência dos contratos de serviço de transporte não significa a inexistência de saldo de investimento a recuperar.
Demonstrações financeiras como fonte confiável
A ANP reconhece ainda a importância das demonstrações financeiras como uma fonte confiável para determinar a valoração de ativos de transporte, tendo em vista que as demonstrações financeiras são auditadas por auditores independentes, segundo critérios contábeis amplamente reconhecidos pelo mercado.
Em sua Nota Técnica 007/2018-SIM, a agência concluiu que a prática contábil adotada pelo transportador ao longo do tempo “constitui um fato consumado a produzir seus efeitos” para definição da receita máxima permitida”.
Avaliações internas não possuem valor regulatório
Consistente com a opção de adotar esse dado de realidade trazido pelas demonstrações financeiras, a ANP já se pronunciou no sentido de que discussões internas, atos preparatórios e avaliações econômicas realizadas no âmbito de negociações privadas servem para embasar a tomada de decisão dos agentes econômicos envolvidos.
Esses elementos, contudo, não devem produzir efeitos perante terceiros, nem serem utilizadas como evidência suficiente para determinar um processo de revisão tarifária
Não se deve, portanto, confundir avaliações econômicas feitas no âmbito de operações de compra e venda de empresas ou de financiamento com memórias de cálculo aptas para serem utilizadas no contexto de uma revisão tarifária.
Caso as tarifas fossem alteradas com base nesse tipo avaliação, elas também poderiam estar sujeitas a aumentos dependendo dos termos das avaliações feitas por cada agente e da negociação privada entre eles. Isso poderia gerar debates sobre a adequação e eficiência dessa medida para fins de regulação tarifária.
Se, por um lado, houve importantes avanços no mercado de gás ao longo dos últimos anos que precisam ser celebrados, como o aumento da concorrência e da transparência, por outro lado, é importante que autoridades e agentes de mercado sigam vigilantes e ativos na construção de um mercado de gás com maiores níveis de competição e segurança para investimentos.
Essa construção deve conduzir a preços mais competitivos de forma estrutural, o que só é possível por meio do respeito às regras aplicáveis ao processo de revisão tarifária e às boas práticas de contabilização e avaliação de ativos regulados.
A busca por preços mais competitivos e pela atração de novos investimentos é legítima e necessária, mas deve ser conduzida com cautela e equilíbrio conforme as regras do jogo. Como advertia Frei Lourenço ao impulsivo Romeu: “Chegar rápido demais é tão errado quanto chegar tarde”.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Felipe Boechem é sócio de Petróleo e Gás do Lefosse.
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