Opinião

Segurança energética precisa de racionalidade

A experiência espanhola com GNL demonstra que até mesmo as boas ideias, quando em excesso, se transformam em desperdício, escrevem Marina Cyrino e Ricardo Piedras

Navio-tanque Golar Mazo atracado em terminal de GNL (Foto Cortesia)
Navio-tanque Golar Mazo atracado em terminal de GNL (Foto Cortesia)

A escolha de implantar os dois primeiros terminais flutuantes de regaseificação de gás natural liquefeito (GNL) no Brasil, em 2006/2007, foi uma decisão acertada. À época, havia uma necessidade clara e urgente de ampliar o suprimento de gás natural para a geração elétrica, em meio à escassez hídrica e à ausência de infraestrutura adequada. 

A solução escolhida — terminais flutuantes — permitiu agilidade na implantação e respondeu à conjuntura daquele momento.

Mas o que veio depois traz algumas preocupações. Desde 2020, houve uma proliferação de terminais flutuantes de GNL no país, viabilizados, não por uma política coordenada de segurança ou de expansão eficiente do sistema energético, mas por oportunidades criadas pelas regras dos leilões de energia

O resultado é uma infraestrutura cara, pulverizada, com alta taxa de ociosidade e baixa conexão com o sistema de transporte — sem garantir, de fato, a segurança de suprimento do país.

Recentemente, defensores desse modelo descoordenado invocaram o exemplo da Espanha como justificativa para a expansão dos terminais flutuantes de regaseificação no Brasil. 

Mas é preciso cuidado: o caso espanhol é profundamente distinto do brasileiro e alvo de severas críticas dentro da própria Europa.

A Espanha adotou uma estratégia de implantação de terminais terrestres de GNL ao longo das últimas duas décadas com o objetivo claro de diversificar seu suprimento, fortemente dependente da Argélia, país com histórico de instabilidade política. 

Com sete terminais terrestres distribuídos ao longo da costa, todos com armazenagem de grande porte, o país desenvolveu uma infraestrutura voltada para a segurança energética.

A taxa média de utilização dos terminais espanhóis foi apenas 24% em 2024, segundo dados da GIE (Gas Infrastructure Europe, em inglês), organização europeia que monitora a infraestrutura de gás natural. 

A União Europeia, sem considerar a Espanha, alcançou uma taxa média de utilização dos terminais de GNL de 49,7% em 2024

Em outras palavras, a Espanha é hoje o país europeu com a maior capacidade ociosa de regaseificação de GNL — e essa sobrecapacidade tem sido criticada por especialistas e órgãos como a IEEFA (Institute for Energy Economics and Financial Analysis, em inglês), que alertam para os impactos nas tarifas decorrentes de ativos subutilizados. 

O estudo da IEEFA constatou que o custo de gás para os consumidores domésticos na Espanha no período de 2017 a 2021 foi o 2º mais alto entre sete países selecionados, sendo superado apenas pela Suécia.

No Brasil, a situação é mais grave. Temos hoje oito terminais de regaseificação, todos flutuantes, e nenhum terrestre. 

A capacidade de estocagem desses terminais é mínima, o custo de afretamento é alto e, ao contrário do caso espanhol, nem todos estão conectados ao sistema de transporte de gás natural.

A taxa de utilização dos terminais flutuantes na costa brasileira é baixíssima: a utilização média em 2024 foi inferior a 6%, com base em dados do Boletim Mensal de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural do Ministério de Minas e Energia (MME). 

Mesmo em um ano com elevada importação de GNL como em 2021, a taxa de utilização média, com base na capacidade atual, teria sido inferior a 18%.

E, diferentemente da Espanha, os terminais flutuantes continuam a ser implantados no Brasil, não como parte de uma estratégia nacional de segurança energética, mas como solução individual para viabilizar projetos isolados de geração.

O argumento de que a sobrecapacidade é positiva por garantir flexibilidade e concorrência, também merece ponderação. 

Essa flexibilidade deve ser planejada, economicamente racional e integrada ao sistema de transporte — não um subproduto de regras de leilões que não enxergam o custo total da energia (elétron + molécula).

O que precisamos é de uma infraestrutura de gás natural baseada em critérios de eficiência e segurança. Um modelo que promova a integração entre os sistemas de gás natural e energia elétrica, que favoreça o uso eficiente da infraestrutura existente, com objetivo de reduzir o Custo-Brasil.

A verdadeira segurança energética não está na multiplicação de terminais flutuantes, mas na construção de um sistema coeso e planejado, que aproveite o potencial de suprimento nacional (principalmente do pré-sal), que diversifique com inteligência e que evite transformar um instrumento legítimo como o GNL em mais um custo desnecessário para o país.

A lição espanhola é clara: até mesmo as boas ideias, quando levadas ao excesso, se transformam em desperdício.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.


Marina Cyrino é gerente Jurídico e Regulatório da Associação de Empresas de Transporte de Gás Natural por Gasoduto (ATGás).

Ricardo Piedras é especialista em gás natural e economista da ATGás.

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