A evolução do setor de gás natural no Brasil enfrenta desafios estruturais resultantes da combinação de uma demanda instável, da insuficiência de infraestrutura e de um cenário regulatório incerto. O aumento da oferta interna, essencial para desvincular os preços do gás das oscilações do petróleo internacional, depende da expansão da capacidade de produção nacional e da ampliação da rede de gasodutos.
Contudo, as condições institucionais e regulatórias das últimas décadas têm dificultado o planejamento e a execução dos investimentos necessários, limitando o crescimento do setor e a diversificação da oferta. Embora o recente decreto 12.153, de 26 de agosto de 2024, indique avanços na resolução de problemas existentes, ainda persistem incertezas.
De acordo com a projeção da Empresa de Pesquisa Energética (EPE, 2021) [1] para 2024, cerca de 35% do consumo de gás natural no Brasil é destinado à geração termelétrica. Essa demanda assegura a estabilidade do sistema elétrico, compensando principalmente a instabilidade da geração hidrelétrica, que é cada vez mais afetada por secas.
A necessidade de garantir o fornecimento de gás durante períodos de baixa produção hidrelétrica, ou recorrer à importação de gás natural liquefeito (GNL), exige um planejamento adequado para atender à demanda da termoeletricidade, que, por sua vez, é irregular e ocorre apenas em momentos específicos.
Isso dificulta que o gás seja distribuído de forma contínua a outros consumidores mais regulares, como residenciais, comerciais e setores industriais intensivos em energia que utilizam o gás como insumo. Esse desenho do mercado gera custos adicionais para os vendedores, devido à dificuldade de prever e equilibrar o fornecimento de maneira eficiente.
Além disso, a oferta de gás natural no Brasil depende de uma infraestrutura de dutos e armazenagem que precisa de investimentos substanciais.
No entanto, esses investimentos são comprometidos pela instabilidade institucional brasileira, uma vez que a Petrobras, a principal empresa do setor, enfrenta constantes interferências em suas operações, decorrentes de mudanças de legislação, da estrutura e funcionamento do mercado, e da própria governança da empresa, permanentemente alterada, dificultando sua atuação e planejamento estratégico.
Nos últimos anos, a estatal passou por mudanças em sua governança que determinaram a venda de ativos importantes. Em 2015, a Petrobras vendeu 49% da Gaspetro, que operava em diversas distribuidoras estaduais de gás. Em 2017, desfez-se de 90% da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) e, em 2019, da Transportadora de Gás, transferindo essas participações para empresas e fundos privados.
Além disso, o Termo de Cessação de Conduta (TCC) firmado com o Cade, em 2019, obrigou a Petrobras a se retirar completamente dos segmentos regulados de transporte e distribuição de gás, mantendo apenas uma pequena participação em produção, importação, processamento e comercialização. O TCC também restringiu a aquisição de gás da empresa de parceiros ou terceiros, transferindo essa responsabilidade para outros produtores.
Na sequência, em 2021, a Lei 14.134 (“Lei do Gás“) foi introduzida, segundo a ANP [2], para “atrair investimentos, aumentar a concorrência na atividade de comercialização e, consequentemente, reduzir o preço final do gás natural para o consumidor”, o que não ocorreu.
O Decreto 12.153, de 26 de agosto de 2024, trouxe importantes alterações à Lei do Gás, incluindo novas regras para o escoamento e tratamento do gás natural, além de atribuir à ANP um papel mais ativo na regulação do uso dos dutos e na formação de preços ao longo da cadeia do setor.
O decreto também impõe condições à reinjeção de gás nos campos em exploração e permite que o gás da PPSA, hoje revendido às operadoras, seja comercializado diretamente aos consumidores.
Com isso, a Petrobras, como detentora do sistema de dutos de escoamento, terá que permitir o uso desses sistemas a terceiros, além de ter os preços do gás regulados e enfrentar limitações à reinjeção nos poços. Um quadro como esse dificulta o planejamento de investimentos no setor, que exige aportes significativos, especialmente da Petrobras.
A estatal opera em um ambiente incerto, sendo ora incentivada a investir, ora forçada a se retirar de certos segmentos, comprometendo a estabilidade necessária para decisões de longo prazo.
Investimentos na construção de infraestrutura para o escoamento de gás natural das áreas de produção, predominantemente offshore no pré-sal, até os principais centros de consumo, especialmente o setor industrial, são essenciais para diversificar a oferta.
Sem essa expansão, o Brasil continuará na situação atual, com uma dependência significativa das importações de gás, especialmente da Bolívia.
Vale observar que as reservas de gás na Bolívia estão em declínio, e sem novos investimentos, a oferta vai diminuir gradualmente. Uma das soluções propostas, de utilizar parte da infraestrutura do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol) para transportar gás proveniente de Vaca Muerta na Argentina, exigirá investimentos adicionais em infraestrutura.
Além disso, o preço do gás boliviano é dolarizado e vinculado a uma cesta internacional, tornando-o fortemente suscetível às variações do petróleo e do dólar. Adicionalmente, a importação de GNL, também dolarizada, aumenta a vulnerabilidade do Brasil a essas oscilações, reforçando a necessidade de diversificação da oferta interna.
Portanto, o aumento da oferta e a desvinculação dos preços do gás das flutuações internacionais do petróleo dependem da expansão da capacidade de produção interna e da ampliação da rede de dutos de escoamento. Essa estratégia não apenas diversificaria a fonte de abastecimento, mas também permitiria uma autonomia maior dos preços, reduzindo a influência de fatores externos.
O novo decreto, no entanto, não parece ser o desfecho definitivo, pois ainda não estabelece um ambiente regulatório estável e favorável a novos investimentos, especialmente da empresa líder do setor.
Embora o objetivo de ampliar a oferta e reduzir os preços seja meritório – especialmente no contexto de transição energética, onde o gás natural deve assumir um papel mais relevante na matriz energética –, persistem dúvidas quanto à eficácia dos instrumentos regulatórios propostos e à capacidade da ANP de implementá-los de maneira eficiente.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou estão vinculado.
Adhemar S. Mineiro é economista e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).
Referências
[1] Plano Decenal de Expansão de Energia 2030. Disponível em <https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-490/PDE%202030_RevisaoPosCP_rv2.pdf>. Acessado em 11/10/2024.
[2] Nova Lei do Gás (Lei nº 14.134/2021) e Decreto nº 10.712/2021. Disponível em <https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/movimentacao-estocagem-e-comercializacao-de-gas-natural/transporte-de-gas-natural/nova-lei-do-gas-lei-no-14-134-2021-e-decreto-no-10-712-2021>. Acessado em 11/10/2024.