Opinião

O mito da geração espontânea de gás natural

Especialistas defendem que segurança energética depende da disponibilidade de gás, não apenas de dutos. GNL e modelo R2W foram cruciais em crises hídricas, avalia José Andrade

Eneva vê oportunidade na produção de gás natural para fertilizantes na Bacia do Paraná, diz CEO. Na imagem: Unidade de tratamento de gás natural (UTG) da Eneva no complexo Parnaíba (Foto: Divulgação)
Unidade de tratamento de gás natural da Eneva no complexo Parnaíba (Foto: Divulgação)

A crítica recorrente, por parte de alguns agentes, às usinas termelétricas a gás natural fora da malha de transporte ignora pontos fundamentais da realidade do setor energético brasileiro.

Quando se afirma que essas térmicas “não estão conectadas aos dutos”, parte-se de uma falsa equivalência entre infraestrutura de transporte e garantia de suprimento. É como comparar laranjas com bananas — uma espécie de dutoplanismo.

Peço licença para afirmar o óbvio: dutos, por si só, não produzem moléculas de gás. Mesmo as térmicas conectadas à malha precisarão de um suprimento com perfil flexível — algo que a produção nacional atual, majoritariamente proveniente de gás associado (oriundo da produção de petróleo), não consegue garantir.

Trata-se de uma produção inflexível, condicionada ao ritmo da extração de óleo, e bastante limitada para responder às variações da demanda elétrica.

No Brasil, há apenas duas soluções maduras e viáveis para fornecer, em grande escala, gás com flexibilidade: o Gás Natural Liquefeito (GNL), via terminais de regaseificação, e o modelo conhecido como Reservoir to Wire (R2W), que pressupõe a capacidade de armazenar o gás para uso exclusivamente nos momentos de necessidade.

O modelo R2W foi adotado com pioneirismo pela Eneva, especialmente no atendimento ao Complexo Parnaíba, no Maranhão. Nesse arranjo, a geração elétrica está diretamente associada a campos de gás dedicados, operando há mais de dez anos, com grande confiabilidade e eficiência, de forma isolada da malha nacional.

Embora muito eficiente sob certos aspectos logísticos e estratégicos, o modelo exige condições muito específicas para ser replicável: disponibilidade de reservas de gás onshore economicamente viáveis, escala suficiente para justificar a infraestrutura dedicada e um ambiente regulatório estável. Por isso, sua adoção em larga escala é bastante restrita.

É nesse cenário que as térmicas, supridas por terminais de GNL, têm se mostrado imprescindíveis. Nos últimos 15 anos, foram protagonistas silenciosas em momentos críticos do sistema elétrico — como nas crises hídricas de 2014 e 2021.

Nessas ocasiões, térmicas como Sergipe, Pecém, GNA e várias outras, inclusive as supridas ou operadas pela Petrobras, foram decisivas para evitar apagões, lançando mão do GNL disponível e despachável de forma flexível.

Além disso, não é à toa que a imensa maioria dos projetos de usinas “conectadas” aos dutos que participaram dos LRCAPs de 2021 — e mesmo aqueles que buscaram cadastramento no de 2025 — utilizaram o GNL como fonte de suprimento para efeito de viabilização.

Em outras palavras, e buscando esclarecer o óbvio: a simples conexão à malha de transporte não elimina a necessidade de um suprimento flexível, e o GNL segue cumprindo esse papel mesmo para as usinas “dentro da rede”. 

Desqualificar projetos por não estarem conectados à malha é perder de vista o que realmente importa: não é o tubo que gera segurança energética, é a molécula. E, hoje, as moléculas que fazem a diferença em agregar confiabilidade e flexibilidade ao setor elétrico vêm, majoritariamente, do GNL.

E o transporte de gás natural será contratado na medida que agregue valor ao modelo de negócio de cada solução.

Novamente, temos o exemplo da Eneva, que contratou a conexão do seu terminal de regaseificação, localizado em Sergipe, ao serviço de transporte da TAG, visando atender clientes localizados na malha, com efeitos positivos na competição pelo suprimento de gás natural ao mercado brasileiro.

Dessa forma, os debates em torno do planejamento e contratação de novas térmicas devem se concentrar no que realmente agrega valor ao sistema.

Como em qualquer certame que busca contratar serviços com eficiência, os LRCAPs (leilões de potência) devem comparar as propostas considerando o custo total percebido pelo consumidor, incluindo, obviamente, o custo total específico de cada solução: suprimento de combustível, logística e disponibilização da capacidade de geração.

Não se trata de demonizar um ou outro modelo, mas de permitir a competição justa. O que não faz sentido é o já sacrificado consumidor de energia elétrica pagar para subsidiar uma das soluções, favorecendo alguns grupos econômicos em detrimento de outros, sem que haja incentivos a  novas soluções que atendam a real necessidade do sistema.

Que sejam vencedoras as ofertas mais competitivas — não as mais “conectadas”.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.


José Andrade é gerente-geral de Inteligência de Mercado da Eneva, desde 2021. É engenheiro e mestre em Processamento de Sinais pela Coppe/UFRJ. Atua há 29 anos no setor de gás, tendo passagens pela Petrobras, BR Distribuidora e IBP.

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