Opinião

Mercado quer evitar risco de dupla cobrança por ativos já amortizados de gasodutos de transporte

Uma revisão tarifária com mais tempo para debate e em linha com as melhores práticas regulatórias pode ser decisiva para o desenvolvimento sustentável do setor de gás natural, escreve Bruno Armbrust

Bruno Armbrust na Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado (Foto Saulo Cruz/Agência Senado)
Bruno Armbrust na Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado (Foto Saulo Cruz/Agência Senado)

O transporte de gás natural no Brasil tem uma das tarifas mais caras do mundo, chegando a ser quatro vezes mais que a maioria das tarifas de transporte praticadas na União Europeia.

As propostas apresentadas pelas transportadoras fariam as tarifas subirem ainda mais, sem que tenham construído novos gasodutos. Estamos falando de 20% do custo do gás nos pontos de transferência de custódia do gás, os city-gates.

Isso impacta claramente na competitividade. É notório que a indústria brasileira vem enfrentando dificuldades para competir com seus concorrentes de outros países cujos custos de gás são mais baratos.

E esses custos afetam a demanda. Os volumes atuais, comparados aos anos de maiores médias de consumo, demonstram uma retração no mercado de gás natural nos últimos dez anos que fez a demanda nacional retroagir ao patamar de duas décadas atrás. O mercado, aqui, encolheu 50%, enquanto no mundo houve crescimento.

Portanto, é bastante acertada a visão antecipada pelo diretor da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Pietro Mendes, durante o diálogos da transição, evento produzido pelo estúdio eixos com parceria estratégica da Firjan, sinalizando que a agência só irá concluir a revisão das tarifas de transporte (Consulta Pública 08/2025) em 2006 — o que permite concluir que a prioridade é a definição da metodologia (Consulta Pública 05/2025) e, só, posteriormente, a efetiva análise da proposta tarifária.

Importante dizer que o alongamento dos prazos no cronograma — um pedido unânime de todos os demais agentes do setor reunidos no Conselho de Usuários (produtores, distribuidoras e consumidores) em diversas instâncias, inclusive no Senado Federal — não trará nenhum tipo de prejuízo ao mercado.

E isso é perfeitamente factível com a adoção de tarifas extraordinárias de transporte, expediente já utilizado pela ANP sem complexidade significativa, e que permite a realização do Processo de Oferta e Contratação de Capacidade (POCC).

Nesse sentido, transformar em preliminar a discussão já aberta com a Consulta Pública nº 08/2025, confere, sim, legitimidade ao processo, e garante efetiva participação social e protagonismo aos consumidores, permitindo que uma nova consulta seja aberta quando estiver definida a metodologia.

A ANP, aliás, poderia aproveitar a reorganização da agenda e elaborar uma espécie de template para realizar uma harmonização das informações das diferentes transportadoras, pois as propostas apresentadas, que deverão ser revistas, não apresentavam uma mínima padronização, dificultando sobremaneira a análise dos agentes.

Uma nova proposta colocada em consulta pública também deveria estar alinhada com os preceitos da metodologia e passar previamente por um escrutínio dos técnicos da ANP.

Metodologia é essencial

De acordo com nossas estimativas, a Receita Máxima Requerida, se calculada pelo método de Custo de Reposição Novo (CRN), poderia cair significativamente caso fosse revisada a totalidade dos chamados “contratos legados” de transporte de gás natural, firmados em um ambiente de mercado onde a Petrobras operava de forma dominante em toda a cadeia.

Tais contratos, vale um breve histórico, foram herdados pela Nova Transportadora do Sudeste (NTS) e Transportadora Associada de Gás (TAG) quando os ativos então vinculados à Petrobras foram privatizados, em 2017 e 2019, respectivamente.

Eles consistem na garantia de receita para as transportadoras, via cláusula de ship-or-pay (use ou pague), pela qual os carregadores (quem contrata o transporte) se comprometiam a pagar pela capacidade de transporte reservada no gasoduto, independentemente de fazer uso ou não.

Mesmo depois da privatização, os termos desses contratos legados ficaram totalmente desconhecidos do mercado, até que, em março deste ano, a ANP finalmente decidiu dar publicidade às memórias de cálculo, atendendo à demanda de boa parte do mercado, mas contrariando o posicionamento das transportadoras, que preferiam que esses dados não viessem à tona.

A publicidade não elucidou totalmente as dúvidas dos agentes interessados, seja por falta de padronização ou de clareza no registro das informações. Ainda assim, foi suficiente para confirmar o que já se suspeitava:

  1. A estrutura dos fluxos já garantiu a devolução do capital investido e assegurou a devida remuneração dos ativos ao longo de duas décadas;
  2. Esses fluxos foram aprovados pela ANP como “Modelo Tarifário” e suportaram as tarifas de transporte que se pagaram nesses últimos 20 anos, refletindo o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos legados;
  3. Alguns ativos, como as então chamadas malhas Nordeste e Sudeste — todos construídos quando a Petrobras controlava as empresas —, são muitos antigos e alguns deles foram atualizados pela metodologia de CRN (Custo de Reposição Novo) e outros estavam fixados em dólares.

Fica claro que o modelo de remuneração desses contratos legados tem como premissa a recuperação total dos investimentos ao longo da sua vigência, o que implicou em tarifas de transporte muito elevadas.

Graças a essa condição contratual, mesmo com os investimentos quase que inteiramente amortizados, os acionistas das transportadoras mantiveram uma remuneração elevada, garantida pelos contratos legados, independentemente do volume carregado nos gasodutos.

Na Consulta Pública 05/2025, o que mais chamou a atenção na primeira sessão da audiência pública, realizada em 8 de outubro de 2025, foi uma tese extravagante.

Na audiência, as transportadoras — que sempre se agarraram aos contratos legados para solapar qualquer discussão sobre a redução de tarifa — passaram a advogar que os fluxos tornados públicos em março deste ano pela ANP não seriam válidos para se estabelecer o critério de amortização da Base Regulatória de Ativos (BRA) dessas infraestruturas cujos contratos legados irão expirar em 31 de dezembro de 2025.

Vejam bem: esses fluxos de caixa originais dos contratos legados foram reconhecidos pela ANP como modelo regulatório de remuneração da tarifa nos últimos 20 anos e serviram de base para a formulação das tarifas até aqui.

Ainda mais grave, as transportadoras querem que esse critério seja blindado, o que fará com que recebam, indevidamente, mais de R$ 10 bilhões no próximo quinquênio, que se multiplicarão nos quinquênios seguintes, a se considerar que, pela proposta delas, os mesmos critérios serão válidos para os demais contratos legados que vencerão até 2033 e que representam cerca de 70% da totalidade desses acordos assinados.

Traduzindo: parte dos contratos legados termina em 31/12/2025, quando esses ativos já estarão praticamente amortizados, mas as transportadoras reivindicam que esses ativos voltem a ser remunerados.

No final, o objetivo parece claro: é o de manter as elevadas receitas e as margens das transportadoras.

É interessante notar, aliás, que a NTS e a TAG tiveram protagonismo na categoria de transporte e logística do Prêmio Valor 1000, do jornal Valor Econômico. Lideraram as duas primeiras posições no ranking das maiores margens de lucro sobre receita, com 90,9% e 86,5%, respectivamente.

  • A Margem Ebitda é o indicador que revela a capacidade da empresa de transformar a sua receita em lucro operacional, sem as distorções de juros, impostos ou custos não-caixa (depreciação e amortização).

Tarifas no ciclo 2026-2030 podem cair até 30%

É por essa razão que a definição da Base Regulatória de Ativos (BRA) das transportadoras de gás natural é um tema crucial para o debate da revisão tarifária para o ciclo 2026-2030.

Com uma revisão criteriosa da proposta das transportadoras, em um quadro de demanda de gás estável, as tarifas poderiam ser, em nossos cálculos, até 30% inferiores às tarifas propostas pelas transportadoras. Esse percentual aproximaria as tarifas das expectativas manifestadas pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

Para isso, é fundamental que a ANP estabeleça uma taxa de retorno (WACC) abaixo dos 7,25% praticada no atual quinquênio, e se faça a adoção da amortização dos ativos das Malhas SE e NE, pelo Valor Residual Econômico (VRE).

Não menos importante, seria a realização pela ANP de uma auditoria no Opex, que parece muito acima das boas práticas, e nos montantes de sustaining Capex do passado (que deveriam estar cobertos pelos contratos legados) e os projetados para 2026-2030. Por último, a ANP deveria adotar o conceito roll-forward a partir do ciclo quinquenal seguinte ao do comissionamento de um novo investimento.

É essencial rever os custos de transporte, estimular a concorrência real no mercado e criar condições para que a demanda volte a crescer. Investimentos devem ser feitos com base em necessidade comprovada — e não por expectativa de remuneração garantida.

Um debate com mais tempo e em linha com as melhores práticas regulatórias pode ser decisivo para viabilizar o desenvolvimento sustentável do setor de gás natural no Brasil.


Bruno Armbrust é sócio-fundador da ARM Consultoria; foi presidente do grupo Naturgy na Itália; vice-presidente da Associazione Nazionale Industriali Privati Gas e Servizi Energetici na Itália (Assogas); e presidente da Naturgy no Brasil.

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