O debate sobre as vulnerabilidades do mercado brasileiro de gás vem chegando a um momento-chave.
Nesse diálogo, o Ministério de Minas e Energia (MME) tem sido fundamental, assumindo seu papel de exercer a formulação de políticas públicas no setor e estimulando uma discussão mais abrangente, profunda e orientada para resultados.
Isso ficou evidente não só com a realização de eventos para ouvir diversos agentes sobre temas como desconcentração, modernização e expansão do mercado, mas principalmente pela apresentação de estudos oportunos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE): as metodologias de Gas Release e do Plano Nacional Integrado de Infraestruturas de Gás Natural e Biometano.
Além disso, o ministro Alexandre Silveira (PSD) tem sido incisivo sobre a urgência de reforçar a infraestrutura brasileira de gás e criar medidas para dar mais competitividade aos ativos existentes.
Além de rever os custos dos sistemas integrados de Escoamento e Processamento (SIE-SIP), Silveira tem sido bastante vocal sobre as elevadas tarifas de transporte de gás praticadas no Brasil.
E esse, de fato, é um tema prioritário: o Brasil precisa, o quanto antes, de uma regulação adequada para o transporte de gás.
Enfrentar essa questão requer, necessariamente, que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) busque uma solução para os chamados contratos legados da Petrobras, firmados durante a privatização de duas transportadoras: a Nova Transportadora do Sudeste (NTS), em 2017, e a Transportadora Associada de Gás (TAG), em 2020.
Há uma percepção crescente de que o ônus desses contratos deve ser urgentemente excluído da base de cálculo tarifário, pois seu impacto eleva o custo final para os consumidores.
Cabe à ANP, portanto, avaliar e adotar mecanismos que mitiguem esse custo, com a devida tecnicidade, autonomia e transparência, conforme suas atribuições regulatórias.
É importante reconhecer que a diretoria da ANP fez um movimento fundamental, este ano, ao decidir dar publicidade às memórias de cálculo das tarifas de transporte.
Ainda que não tragam plenamente as condições existentes nos contratos legados, as memórias de cálculo que vieram à superfície indicam que as Receitas Máximas Permitidas das transportadoras foram estabelecidas sem que fossem precedidas por uma análise prévia da ANP, com base nos critérios fixados pela própria agência reguladora em sua Resolução RANP nº 15/2014.
Além disso, nem mesmo acompanharam as boas práticas regulatórias, como indica a resolução CNPE 03/2022.
Análises iniciais desses documentos mostram que as Receitas Máximas Permitidas das transportadoras têm base em frágeis fluxos financeiros informados pela Petrobras para diferentes gasodutos, alguns com taxas de retorno muito elevados para a atividade e projeções de custos acima do que seria admissível para a construção de gasodutos.
Ao final dessas análises, restaram dúvidas que pedem esclarecimentos: os valores contidos nas planilhas são projeções ou custos reais? E a ANP chegou a realizar algum tipo de auditoria para verificar esses custos de construção?
Em muitos países, é comum que os reguladores, pelo princípio do estímulo à eficiência, estabeleçam custos unitários máximos para retribuição dos ativos.
No caso das planilhas divulgadas, é possível perceber que os custos de determinados ativos são elevados e que não existe uma mínima assimetria de critérios entre os diferentes contratos legados.
As planilhas indicam ainda que alguns ativos que já superaram 30 anos e que outros, que ainda não eram operacionais, foram considerados nos fluxos. Tampouco há explicações suficientes para justificar os custos de Operação e Manutenção (O&M).
Não se questiona, que fique claro, a transferência dos ativos das transportadoras da Petrobras para agentes privados e independentes. No entanto, esse processo, por se configurar como um movimento típico de desverticalização, certamente deveria ter sido precedido de uma auditoria e uma revisão tarifária prévia pela ANP.
O que o mercado suspeita é que, no processo de valuation dos ativos, houve uma maximização do preço de venda pela Petrobras, levando a uma fixação de Receitas Máximas Permitidas que não corresponde à realidade.
No fim do dia, isso acaba pesando na conta de gás dos consumidores e causa perda de competitividade para a indústria brasileira.
As tarifas de transporte, principalmente na região Sudeste, estão muito acima do que corresponderia à justa remuneração pelo serviço prestado, o que acaba acarretando a busca dos usuários do serviço por alternativas mais eficientes, levando ao esvaziamento da malha de transporte, em razão da prática de tarifas elevadas não compatíveis com a natureza dos serviços.
Portanto, os impactos dessa ineficiência não podem ser repassados para a Receita Máxima Permitida e respectivas tarifas da transportadora.
Caminhos para uma solução
Ainda que com dados insuficientes, a publicidade das memórias de cálculo das transportadoras lembra um conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875).
Antes eram poucos que tinham coragem de apontar que o rei estava nu, mas finalmente ficou visível para todos que as tarifas de transporte hoje praticadas são absolutamente incompatíveis com os objetivos comuns de que o Brasil finalmente tenha um mercado de gás transparente e competitivo.
A boa notícia: o país tem uma janela de oportunidade para rever esse equívoco. Com a proximidade do vencimento do primeiro dos contratos legados da NTS e TAG, ao final deste ano, a ANP tem a faca e o queijo para promover uma Revisão Tarifária Integral das tarifas de transporte.
Isso permitiria que, sim, os agentes sejam remunerados adequadamente pela sua Base Regulatória de Ativos (BRA). Mas não pelo valor pago à Petrobras.
Logo, uma necessária Revisão Integral das Tarifas deve ter como ponto de partida dois requisitos:
- A aplicação de uma metodologia do chamado Custo de Reposição Novo, menos depreciação a partir de uma Base Regulatória de Ativo não fragmentada em diferentes contratos;
- A aplicação de uma única taxa gerando uma Receita Máxima Permitida global para cada transportadora, em vez de um somatório de receitas de distintos contratos que seguem premissas diferentes e onerosas e que nem mesmo foram objeto de análise pelo regulador.
É justo afirmar que, mesmo sob regime de autorização, o transporte de gás também deve ser regido pelos princípios da eficiência, impessoalidade, transparência e modicidade tarifária.
E os principais ativos das transportadoras têm uma idade média que se aproxima dos 20 anos — no caso da NTS, mais de 60% da malha (km x polegadas) estão concentrados em gasodutos que já passam dos 30 anos.
Mas o que uma Revisão Integral de Tarifas pode trazer de positivo para o mercado?
Dados de consultores ouvidos pela Abegás apontam que, no caso da Malha Sudeste, a realização de uma revisão integral das tarifas até o final de 2025 teria potencial de reduzir em até 60% as tarifas do Sudeste.
Isso significa uma redução de aproximadamente 20% no preço do gás no city-gate. Repito: 20%.
Certo, mas como isso vai funcionar?
Cabe à ANP acompanhar o funcionamento do mercado de gás natural e adotar mecanismos de estímulo à eficiência e à competitividade.
A Lei 14.134/2021, em seu Art. 9º, determina que, após a realização de consulta pública, a ANP deve estipular a Receita Máxima Permitida do transportador, bem como os critérios de reajuste, de revisão periódica e de revisão extraordinária, nos termos da regulação.
O cômputo da Receita Máxima Permitida e o cálculo das tarifas de transporte devem considerar a sinalização dos determinantes de custos associados à área de mercado de capacidade e ao sistema de transporte, além de incluir critérios de eficiência e competitividade, de acordo com a regulação estabelecida.
Quando vier a fazer uma Revisão Tarifária Integral, a ANP deveria desconsiderar os contratos legados — o transporte de gás tem características de serviço público (assim é entendido em diversos países europeus).
Eventuais diferenças de valores decorrentes da Revisão Tarifária Integral para a Receita Máxima Permitida dos contratos legados deveriam ser objeto de negociação entre a Petrobras e as transportadoras, uma vez que a privatização se tratou de negociação entre agentes privados do mercado.
Essa operação financeira não pode deixar como herança um excessivo ônus para a sociedade e para o país, na medida em que as receitas das transportadoras não foram fixadas pelos princípios da transparência, da eficiência e das boas práticas regulatórias, originando uma conta que, no final, é paga pelos usuários dos sistemas.
No contexto do ciclo 2026-2030, a ANP ainda tem uma missão: avaliar, dentro dos investimentos futuros propostos pelas empresas de transporte de gás, os cenários que apontam uma vertiginosa redução da oferta de gás boliviano e as possíveis mudanças geográficas dos volumes nas entradas de gás no país.
Os novos investimentos poderão até trazer incrementos de tarifas, mas o aumento da competitividade poderá trazer aumento das vendas, em benefício da modicidade tarifária.
Transparência: palavra-chave
Além de competitividade, tudo que o mercado quer é transparência.
Ou seja, é importantíssimo que todo esse processo seja pautado pela máxima transparência, em linha com o que prevê a resolução 03/2022 do CNPE.
Isso significa que os usuários das malhas de transporte têm, sim, o direito de acessar as informações sobre a Base Regulatória de Ativos e sobre os custos relativos às tarifas de transporte.
A Revisão Integral de Tarifas, esperada para 2025, deverá estabelecer a metodologia e os parâmetros das informações relacionadas aos requisitos de retribuição dos operadores das redes de transporte e com o cálculo das diferentes tarifas.
O Brasil não pode perder mais tempo, nem mesmo seria saudável entrar em 2026 com uma situação transitória.
É fundamental que a ANP dê a máxima celeridade ao processo de revisão tarifária, viabilizando uma conclusão ainda neste ano.
Augusto Salomon é presidente executivo da Abegás (Associação Brasileira de Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado).