A exponencial transformação no mercado brasileiro de gás natural tem impulsionado discussões mais complexas e exigido celeridade na atualização do arcabouço regulatório, tanto a nível federal, como estadual. A regulação das características técnicas para classificação dos gasodutos de transporte, tema em foco atualmente, é um dos importantes e urgentes avanços colocados em debate pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Esse tema não só orientará o planejamento a partir da distinção clara de seu objetivo —se interesse específico, local ou geral — como também permitirá a construção de um equilíbrio operacional-econômico em uma indústria caracterizada pela interdependência.
Portanto, a regulação da classificação de gasodutos consiste em caracterizar — lato sensu — as diferentes tipologias de gasodutos definidas no regramento legal e é elementar para o desenvolvimento do mercado.
E, sinérgico ao tema, está o planejamento integrado das infraestruturas de gás natural, também em discussão pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e ANP, o qual para garantir uma visão sistêmica, deveria abarcar também a distribuição com o envolvimento dos reguladores estaduais.
A cooperação entre os diferentes agentes e autoridades reguladoras, assim como já acontece em alguns temas regulatórios e operacionais, é basilar para que a coordenação dos investimentos possa acontecer de ponta a ponta, do poço ao consumidor.
A ausência dessa cooperação pode gerar investimentos ineficientes ou sobrepostos que, por consequência, poderão implicar em sobrecustos desnecessários, afetando negativamente a competitividade do gás, almejada pelas políticas públicas em curso. Neste sentido, se faz necessário ajustar as expectativas entre o mercado local e nacional, cujos custos se somam na conta do consumidor.
Paralelo a esse esforço, em buscar a integração e a coordenação dos investimentos nos diferentes elos da cadeia de valor do gás, está a necessidade de estabelecer regras claras sobre a governança na aprovação dos investimentos das transportadoras e distribuidoras.
Em ambas as jurisdições, em grande medida, não há critérios objetivos para determinar quais projetos são necessários, do ponto de vista econômico — atendimento a novas demandas — ou de segurança do sistema.
Ou seja, não há a segregação daqueles investimentos capazes de gerar benefício sistêmico — os quais têm a prerrogativa de aumentar a capacidade de movimentação, ao mesmo tempo em que reduz marginalmente o custo do acesso — daqueles que possibilitam a conexão de fontes de suprimento para atender a propósitos específicos. Estes últimos, deveriam ter tratamento distinto, a fim de não impactar negativamente a tarifa dos demais consumidores. A socialização indiscriminada dos investimentos pode significar tarifas mais altas e perda de competitividade do gás ofertado.
No caso do transporte, há muitas lacunas no plano coordenado de investimentos submetido pelas transportadoras à consulta pública. Primeiro, porque não está claro qual o seu objetivo: se tem o intuito de apenas fornecer subsídios à EPE para a elaboração do Plano Nacional Integrado de Infraestruturas de Gás Natural e Biometano (PNIIGB); ou se se trata de uma etapa prévia à aprovação efetiva dos investimentos pela ANP.
Do mesmo modo, não está claro se todas as infraestruturas constantes no referido plano devem ser classificadas como parte do sistema de transporte, uma vez que algumas têm potencial característica de atender a interesses de um único ou poucos agentes.
Atualmente, do ponto de vista regulatório, a ausência de um rito claro para aprovação dos investimentos cria mais incertezas. Não se sabe em que momento os projetos passarão pelo crivo do regulador: se no momento das revisões tarifárias periódicas ou se poderão ser apreciados em processos extraordinários.
Também não está claro se há diferenciação deste rito para projetos voltados à expansão, que, pela lei, deveriam passar, obrigatoriamente, por chamada pública, e como serão avaliados de forma integrada no encadeamento com outras infraestruturas. Outro ponto de incerteza guarda relação em como será tratada a questão dos gargalos existentes no sistema, que em muitos casos poderiam ser resolvidos por alternativas menos onerosas.
Faltam estudos de sensibilidade, de modo a avaliar se os investimentos previstos continuarão resilientes mesmo em cenários distintos de oferta e demanda e análises de custo-benefício, a fim de demonstrar o comportamento da malha existente com e sem cada projeto. Para tanto, um passo inicial seria a transparência das condições atuais do sistema de transporte, incluindo o nível e a duração da ociosidade.
A ociosidade é variável fundamental nessa equação, tendo em vista as características dos contratos legados que possuem grande flexibilidade e têm efeito direto — no modelo por entradas e saídas — na disponibilidade de capacidade a ser ofertada ao mercado.
Para corroborar este debate, na Europa, o regulador entende como fundamental a abertura dessas informações, como base para planejamentos futuros: proper description of the existing infrastructures endowment represents one of the first steps to build a reliable assessment framework. This is essential as a basis for defining further development of the grid and for accurate project assessment (1) (.pdf).
Um outro aspecto que precisa ser aprimorado é o nível de informação contidos nas fichas dos projetos apresentados no Plano Coordenado, os quais, em grande medida, não possuem detalhes básicos, como estudo de viabilidade econômica, detalhamento do capex e estimativa para o opex e o cronograma físico-financeiros para aqueles em estágios mais avançados, o que sinalizaria para o mercado quais investimentos devem ser priorizados, a partir dos cenários de oferta e demanda traçados. Em alguns casos, trata-se de ideias conceituais, sem análise comparativa de rotas.
O próprio disclaimer contido no plano de que as projeções não devem ser vistas como promessa de desempenho, nos faz questionar qual a função desse planejamento. De certo, há projetos conceituais, mas também há aqueles que se mostram necessários no curto prazo — caso da Ecomp de Japeri.
Portanto, espera-se que o planejamento cumpra a sua função: contemple a perspectiva de entrada dos projetos, no período esperado, a fim de viabilizar o encontro entre oferta e demanda, a partir de análises consistentes, que conferirão segurança e previsibilidade ao mercado.
Ou seja, mais do que uma lista de projetos, o mercado de gás precisa de previsibilidade. Portanto, o Plano Coordenado deve ser um instrumento que balize investimentos, a partir de critérios claros e análises de alternativas.
Sob essa ótica, importa destacar que não há um encontro de informações como forma de reduzir a distância entre a realidade e as projeções. Os dados apresentados estão desatualizados e, em alguns casos, desconexos da realidade, como é o caso da estimativa da demanda firme para o segmento industrial, em que a perspectiva aponta um crescimento de 2% a.a, enquanto o consumo real tem assumido uma trajetória decrescente nos últimos anos.
Do lado da distribuição, as assimetrias de informação são ainda mais preocupantes. Cada estado estabelece um rito para aprovação do plano de investimentos das distribuidoras que, na maioria das vezes, disponibilizam poucas informações para avaliação da viabilidade econômica das expansões planejadas.
Ou seja, é impossível verificar a economicidade e a prudência dos investimentos propostos, especialmente para atendimento a segmentos com baixo consumo, como o residencial e comercial. Na prática, se verifica que a expansão é subsidiada pela indústria, que são os clientes-âncoras das distribuidoras.
Portanto, o país ainda não dispõe — seja para o transporte ou distribuição — de um modelo regulatório sólido, capaz de garantir legitimidade, previsibilidade e transparência ao processo de planejamento.
A integração, tão necessária, pode ser viabilizada por meio do Plano Integrado conduzido pela EPE, desde que haja ampliação do debate e efetiva participação do mercado na definição das premissas e metodologias utilizadas.
No entanto, é certo que o planejamento deve estar subordinado ao rito regulatório, a partir de regras e critérios previamente estabelecidos e transparentes. Como consequência, o custo do transporte e distribuição no Brasil, juntos, é 90% maior que a média da Europa, o que indica a necessidade de garantir, regulatoriamente, maior prudência e eficiência na aprovação desses investimentos.
Somente dessa forma será possível garantir que os investimentos contribuam de maneira efetiva para o desenvolvimento do mercado de gás e em evitar custos desnecessários e sobrepostos e a socialização indevida.
É necessário estruturar o ambiente regulatório com base em informações assertivas, metodologias consistentes e regras coerentes, garantindo cooperação, previsibilidade e segurança jurídica para viabilizar um futuro mais integrado e competitivo do setor.
(1) Em português: uma descrição adequada da dotação das infraestruturas existentes representa um dos primeiros passos para construir uma estrutura de avaliação confiável. Isso é essencial como base para definir o desenvolvimento futuro da rede e para uma avaliação precisa dos projetos.
Adrianno Lorenzon é diretor de Energia da Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres (Abrace).
Juliana Rodrigues é especialista de Energia da Abrace.