Notícias há que, no âmbito do Leilão de Reserva de Capacidade, os agentes transportadores estão sugerindo a criação de subsídio ao setor de gás natural mediante a imposição de ônus ao setor elétrico.
Teria sido proposta a exclusão do custo do transporte dos lances do certame, desconsiderando o respectivo dispêndio de cada projeto termelétrico no ranqueamento das propostas.
Paralelamente, propõem que o custo total do transporte por gasodutos seja arcado diretamente pelo consumidor elétrico final (pass-through), assegurando a remuneração das transportadoras de gás, garantindo-lhes receita mesmo após o próximo fim dos contratos legados [1].
O tema tem levantado discussões, razão pela qual entendemos ser o momento oportuno para contribuir, pluralizando o debate para a maior participação da sociedade, fornecendo subsídios para a tomada de decisão pelas entidades públicas envolvidas.
Regime jurídico da atividade de transporte de gás natural
A atividade de transporte de gás constitui monopólio da União a teor do art. 177, IV, da Constituição Federal (CF/88), passível de desempenho por empresas privadas na forma do § 1º do citado dispositivo.
Embora tenha definido a natureza jurídica das atividades de hidrocarbonetos, não delimitou os contornos regulatórios de cada uma delas, conferindo certa margem de apreciação ao Legislador para disciplinar o regime jurídico da atividade (art. 177, §§ 1º e 2º).
Ao submeter o transporte dutoviário ao regime de autorização, sujeito à concorrência, a Lei do Gás lhe conferiu feições de atividade privada regulamentada. Ainda que pudesse o Legislador ter instituído um regime mais interventivo aos gasodutos de transporte (e, portanto, protetivo aos empreendedores e suas receitas), como permitiria a CF/88 por serem monopólios, ele não o fez.
A Nova Lei do Gás teve por objetivo ampliar a competição no setor, diminuindo a influência de agentes historicamente privilegiados para beneficiar o consumidor final, por exemplo através da redução das tarifas de energia em razão do decréscimo do custo de transporte propiciado pela concorrência.
Este fim obviamente restaria frustrado caso garantidas as receitas das transportadoras via subsídio intersetorial pelo setor elétrico.
Ausência de garantia de receita da atividade de transporte, diferentemente da transmissão de energia elétrica
Foi suscitado nos debates que o pass-through do custo do transporte de gás seguiria a mesma lógica da remuneração das empresas de transmissão de energia elétrica, garantida pela União mediante a cobrança direta dos consumidores finais.
Convém esclarecer, porém, que atividade de transmissão de energia constitui serviço público delegado através de contrato de concessão, cuja receita anual é assegurada pela União [2], razão pela qual o seu regime jurídico não se confunde com o do transporte de gás natural, atividade econômica regulamentada passível de autorização.
A Lei nº. 14.134/2021 é, com efeito, expressa ao prever que a exploração das atividades oriundas das autorizações por ela disciplinadas, inclusive o transporte de gás natural, “correrá por conta e risco do empreendedor e não constitui, em qualquer hipótese, prestação de serviço público” (art. 1º, §2º).
É assim afastado até que as transportadoras teriam direito a equilíbrio econômico-financeiro perante a União com base em suas autorizações, muito menos em decorrência da redução da demanda (que até nos serviços públicos via de regra é um risco atribuído ao concessionário, cf. art. 2º, II, da Lei nº. 8.987/95).
Por força sobretudo do art. 9º da Lei do Gás [3], a “receita máxima permitida” das transportadoras não se traduz em “receita anual” (como a das transmissoras de energia) ou sequer uma “receita mínima garantida”, que se manteria protegida inclusive após o vencimento dos contratos legados.
O dispositivo ressalta ainda, em tom peremptório, com nota de definitividade, que “essa receita não será, em nenhuma hipótese, garantida pela União”, sedimentando a alocação dos riscos da atividade, especialmente quanto à demanda, exclusivamente ao particular.
O dispositivo é, além de definitivo, também absoluto, dispondo que a União, “em nenhuma hipótese”, garantirá tais receitas. Leia-se: não a garantirá nem direta, através do seu Erário, nem indiretamente, através de terceiros por ela regulados, como seria o caso. Não garantirá em nenhuma hipótese.
Violaria a lei uma interpretação que buscasse garantir ao monopolista uma determinada receita, mesmo após o fim de seus contratos atuais, em prejuízo do mercado consumidor. Receita “máxima” permitida não pode querer dizer receita “mínima” garantida.
Com o fim dos contratos legados, mostra-se injurídico interpretar o art. 9º contra a sua própria literalidade — que é sempre o ponto de partida e o limite de qualquer interpretação — para concluir que doravante a União deveria passar a garantir a receita das transportadoras, muito menos alocando o risco da atividade ao setor elétrico via leilão de energia.
Afinal, garantir a receita não significa, repise-se, apenas a União fazê-lo com recursos próprios — que no fim das contas são sempre do contribuinte —, mas também instituir subsídio que obrigue um segmento da sociedade a preservar a posição econômica das transportadoras, transferindo o seu risco em um cenário em que o custo do transporte em geral poderia na realidade ser reduzido.
A remuneração do transportador de gás deve, ao revés, ser definida com base em critérios predefinidos.
Segundo o art. 2º, XXXVI, da Lei nº. 14.134/21, a receita máxima permitida deve ser estabelecida “com base nos custos e despesas vinculados à prestação dos serviços e às obrigações tributárias, na remuneração do investimento em bens e instalações de transporte e na depreciação e amortização das respectivas bases regulatórias de ativos, na forma da regulação da ANP”.
Restaria violado também esse dispositivo, portanto, caso venha a União a assegurar a receita das transportadoras desconsiderando os elementos acima, inclusive quanto à amortização ou depreciação da base de ativos.
Na realidade, se todos os critérios legais e regulamentares fossem considerados, provavelmente ocorreria é uma redução dos preços de transporte, tendo em vista o cenário de baixíssimos investimentos no segmento, em sua maior parte já amortizados e depreciados pelo tempo.
A criação de modelagem de pass-through no setor elétrico, que importe na alocação direta ao consumidor final de custos e riscos que não lhe competem (por serem das transportadoras), no caso dependeria pelo menos de base legal expressa, não podendo ser instituído por mera decisão administrativa.
Por imposição dos Princípios da Legalidade e, mais especificamente, da Essencialidade, se determinada medida regulatória se mostrar muito significativa, tem que pelo menos ter o início de seu tratamento feito diretamente pela lei [4].
A criação de subsídio entre os setores elétrico e de gás é tema tão delicado que no processo legislativo que originou a Nova Lei do Gás foi registrado expressamente como uma de suas finalidades coibir mecanismos daquela natureza [5].
Nele foi expressamente rejeitada emenda voltada à garantia de receita das transportadoras, incluindo esse custo anual nos encargos do setor elétrico, em detrimento do consumidor final de energia.
A justificativa de rejeição da medida consta do Parecer do Relator do projeto, ao afirmar justamente que referida emenda “onera(va) sem maiores justificativas o consumidor de energia elétrica ao determinar o pagamento, por meio de encargos do setor elétrico, da receita máxima permitida de transporte para o titular do gasoduto de transporte” [6].
A operacionalização do leilão de energia para resguardar as receitas das transportadoras consubstanciaria, ainda, desvio de finalidade por parte do Poder Público, quando a competência para realização do certame é exercida para fim diverso da seleção da proposta mais vantajosa, no caso para a proteção dos interesses de certo segmento.
Ainda que tais interesses fossem em tese legítimos para serem protegidos, deveriam sê-lo, por outros meios, não por aquele, já incumbido de outros objetivos como visto.
Outros efeitos juridicamente deletérios
A medida ensejaria, ainda, injurídico enriquecimento sem causa das transportadoras, na medida em que a garantia de receita resultaria na sua remuneração quanto a investimentos que provavelmente já foram total ou parcialmente amortizados ou depreciados.
Em outras palavras, há o risco de as transportadoras virem a ser indevida e duplamente recompensadas, em prejuízo dos consumidores do setor elétrico, que do contrário poderiam ter tarifas mais módicas em decorrência da redução dos custos de transporte com o fim dos contratos legados.
A medida implicaria, ainda, em violação ao Princípio da Modicidade Tarifária no âmbito do setor elétrico, de observância obrigatória aos serviços públicos, inclusive por força do art. 6º, § 1º, da Lei nº. 8.987/95.
Uma vez que a extinção dos contratos legados poderia levar ao decréscimo do custo do transporte e à redução da tarifa de energia ao consumidor final, a garantia da receita das transportadoras via setor elétrico manteria as tarifas em patamares superiores ao possível, sem qualquer política pública legislativamente contemplada nesse sentido e ainda em violação ao art. 9º da Lei do Gás.
A desconsideração do efetivo custo do transporte de cada empreendimento nos lances do leilão de energia compromete igualmente a competitividade e a transparência do certame, também contrariando o Princípio da Vantajosidade em matéria de contratações públicas.
A medida encobriria elemento essencial da formação das propostas (custo de transporte), capaz de influenciar na seleção das que sejam mais vantajosas ao Poder Público, por exemplo por contemplarem soluções inovadoras e mais econômicas ao transporte, não dependendo da malha de gasodutos. Dessa forma, projetos mais eficientes sob a ótica do transporte perderiam esse benefício no âmbito do leilão, estorvando a escolha da proposta mais vantajosa.
A medida também desincentivaria a inovação, desestimulando a busca por soluções mais econômicas sob a ótica do transporte de gás, o que malfere o Princípio da Eficiência, previsto no art. 37, caput da CF/88.
Considerações finais
Não seria dado ao Poder Público optar por preservar a posição econômica de todo o segmento de transporte de gás sem ponderar os possíveis impactos da medida, inclusive como impõe o art. 20 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro —LINDB.
Por um lado, o subsídio intersetorial cogitado protegeria as transportadoras, mesmo no exercício de atividade econômica privada que deveria ser explorada por sua conta e risco (art.1º, § 2º, da Lei do Gás).
Por outro, desincentivaria investimentos daquelas em infraestrutura, já que asseguraria a sua remuneração por ativos já depreciados ou amortizados, ainda desestimulando a busca por soluções inovadoras e mais eficientes ao transporte de gás, que poderiam ser menos custosas ao sistema. Assim, também diante das suas consequências empíricas, mostra-se temerário prosseguir com o pass-through ora aventado.
Esperamos assim contribuir com os debates públicos em curso, exortando todos à promoção de ainda maior diálogo sobre os relevantes temas dos setores de energia elétrica e do gás.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Alexandre Santos de Aragão é professor titular de Direito Administrativo da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), doutor em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) e professor de Direito do Petróleo e do Gás do Doutorado da UERJ.
Referências
[1] No contexto da alienação dos ativos de transporte, a Petrobras contratou com os adquirentes dos gasodutos a sua capacidade total, na modalidade firme, assegurando a receita das transportadoras independentemente da efetiva utilização, enquanto vigentes aqueles instrumentos: os chamados contratos legados.
[2] Conforme sintetiza a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), no regime jurídico do serviço público de transmissão de energia “é garantido ao agente o recebimento da receita regulatória independente da variação do mercado pagante”. Disponível em <https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/transmissao/regulacao>. Acessado em 20/5/2025.
[3] Lei do Gás: “Art. 9º A ANP, após a realização de consulta pública, estipulará a receita máxima permitida de transporte, bem como os critérios de reajuste, de revisão periódica e de revisão extraordinária, nos termos da regulação, e essa receita não será, em nenhuma hipótese, garantida pela União”.
[4] Sobre o tema, Luiz Cabral Moncada, comenta que, por força dos Princípios do Estado de Direito e da Democracia Representativa, há matérias tão relevantes que são apenas atribuíveis pelo Legislador à Administração: “Sucede, porém, que a conjugação dos dois princípios nos obriga a resguardar para o legislador, parlamentar ou equiparado, um núcleo de matérias, essencial do ponto de vista do alcance da decisão normativa” (MONCADA, Luís Cabral. Legalidade, procedimento normativo e rule of law: uma perspectiva comparada. Revista de Estudos Jurídico-Políticos, n. 4-5,1995. p. 118).
[5] Conforme pronunciamento da Empresa de Pesquisa Energética sobre o PL 6.407/2013, que deu origem à Lei nº. 14.134/21, um dos seus objetivos foi garantir que possa “o gás natural se desenvolver estruturalmente, [justamente] evitando subsídios cruzados entre os setores de gás natural e elétrico, aumentando a competitividade e os investimentos no setor energético, favorecendo a redução dos preços de energia” Empresa de Pesquisa Energética. Esclarecimentos Técnicos sobre o PL 6.407/2013. Disponível em <https://www.epe.gov.br/sites-pt/sala-de-imprensa/noticias/Documents/EPE_FactSheet_NovaLeidoGas_MME.pdf>. Acessado em 2/5/2025 (grifamos).
[6] Senado Federal. Parecer de Plenário às Emendas do SF ao PL nº 4.476/2020 (nº anterior PL nº 6.407/2013). Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1975693&filename=PSS+1+CCJC+%3D%3E+PL+4476/2020+%28N%C2%BA+Anterior:+PL+6407/2013%29. Acessado em: 3/5/2025 (grifamos).